MULHERES NA PESQUISA
Elas contribuem para os avanços científicos em diversas áreas há anos e só agora estão sendo conhecidas e valorizadas. Confira os desafios e as conquistas de pesquisadoras que fazem a diferença na Odontologia
A presença das mulheres na ciência é cada vez mais relevante. No Brasil, elas representam 56% do total de doutores nas Ciências da Saúde, segundo dados da plataforma Open Box da Ciência, lançada em fevereiro de 2020. Por outro lado, só 15% das professoras pesquisadoras recebem bolsa de apoio à pesquisa. Foi para dar visibilidade à trajetória dessas mulheres que a organização de mídia Gênero e Número criou a Open Box da Ciência, com apoio do Instituto Serrapilheira.
O projeto criou um ranking com 250 mulheres protagonistas na pesquisa brasileira e selecionou 50 nomes de destaque nas áreas de ciências biológicas, ciências exatas e da terra, ciências da saúde, ciências sociais aplicadas e engenharias. Elas foram entrevistadas e tiveram seus artigos mais relevantes incluídos na plataforma, totalizando quase 500 publicações. Para garantir representatividade racial, foram selecionadas pelo menos cinco cientistas negras em cada segmento.
Para Giulliana Bianconi, diretora e cofundadora da Gênero e Número, os dados mostram que as mulheres estão, sim, ganhando espaço na produção de conhecimento. No entanto, elas não têm tanta exposição ou poder quanto os homens. “Isso já vem sendo questionado em comitês nas universidades, em eventos e congressos, mas existe uma invisibilidade dessas cientistas. Elas acumulam mais funções do que os homens, têm menos tempo para divulgar amplamente seu trabalho e às vezes o chefe da pesquisa e da área determina que é ele quem vai falar e publicar.”
Uma das pesquisadoras selecionadas pela Open Box da Ciência por suas contribuições à ciência é a cirurgiã-dentista Brenda Paula Figueiredo de Almeida Gomes. “Sempre trabalhei com pesquisa, apresentei trabalhos e ministrei cursos, mas a visibilidade feminina tem aumentado muito mais só nos últimos anos”, diz ela, que é professora titular da área de Endodontia da Faculdade de Odontologia de Piracicaba e da Universidade Estadual de Campinas (FOP/Unicamp), e coordenadora do laboratório de Microbiologia e Biologia Celular Aplicada à Endodontia desta universidade. Brenda tem mais de 200 artigos publicados em periódicos internacionais e é pesquisadora nível 1A do CNPq.
Natural de Varginha, Minas Gerais, a pesquisadora é uma das maiores referências brasileiras na área de Endodontia. Única autora de Projetos de Pesquisa Temáticos da Fapesp (2016-2021) neste campo, ela diz que por muito tempo foi a única professora de sua área. “Hoje, trabalho ao lado das professoras doutoras Adriana de Jesus Soares, que tem se destacado na linha de Traumatismos Dentários, e Marina Angélica Marciano, que atua na linha de pesquisa de Biomateriais”.
Ela cita como grande fonte de inspiração a professora doutora Josette Camilleri, da Universidade de Birmingham, na Inglaterra. “Essa pesquisadora e palestrante internacional fez uma pausa logo no início de sua carreira para cuidar da educação de suas filhas. Depois retornou com força total, sendo um dos principais nomes em Biomateriais. Assim como eu aqui no Brasil, a professora Camilleri é uma inspiração para muitas mulheres na carreira universitária”, explica Gomes, que já orientou 25 dissertações de mestrado, 15 delas de mulheres, e 26 teses de doutorado, 16 delas de mulheres.
Sua principal linha de pesquisa é a microbiologia dos canais radiculares infectados. Além de estudar os microbiomas e os aspectos imunobiológicos nas infecções endodônticas, tema do seu Projeto Temático da Fapesp, ela também faz o monitoramento clínico, microbiológico e imunológico da eficácia dos tratamentos endodônticos.
Gomes fez seu doutorado em Manchester, na Inglaterra, tendo como título da tese “Uma investigação sobre a microbiota do canal radicular”. Ela também fez dois pós-doutorados nos Estados Unidos, um na Ohio State University, em Columbus, e o outro no Forsyth Institute, em Cambridge. “Fazer um pós-doutorado no exterior, muitas vezes sem a presença da família, é um desafio que nós, mulheres, temos de enfrentar em nossa carreira.”
Um dos tantos obstáculos apontados pela professora em seu trabalho é conseguir financiamento para as pesquisas. Segundo ela, foi fundamental ter o Projeto Jovem Pesquisador aprovado pela Fapesp no início de sua carreira universitária, o que lhe permitiu reestruturar o laboratório de Microbiologia Aplicada à Endodontia da FOP-Unicamp e ter verba para pesquisa por quatro anos.
O atual Projeto Temático da Fapesp, com duração de cinco anos, também foi uma grande conquista, principalmente nos dias de hoje, em que ocorre limitação de verba para a pesquisa. Outro desafio é conciliar vida profissional com a familiar. “Sempre tive uma rede de apoio, que envolveu família, amigos e colaboradores.”
Brenda Paula F. de Almeida Gomes tem mais de 200 artigos publicados em periódicos internacionais
AVANÇOS E OBSTÁCULOS NA ODONTOLOGIA
O envolvimento de mulheres na pesquisa odontológica aumentou 55% no Brasil nos últimos 20 anos, de acordo com o relatório Gênero no Cenário de Pesquisa Global. O trabalho examinou a diversidade de gênero nos Estados Unidos, na Europa e na região da Ásia-Pacífico em 12 geografias e 27 áreas temáticas.
Um artigo publicado pela International Association for Dental research (IADR) no ano passado cruzou esses dados com o ranking Diferenças Globais entre Gêneros (em inglês, Global Gender Gap Index, ou GGGI), publicado pelo Fórum Econômico Mundial desde 2006.
A análise identificou e revisou cinco questões cruciais da desigualdade de gênero na pesquisa em saúde bucal: fluxo de força de trabalho, desigualdade econômica, assédio no local de trabalho, preconceito de gênero na produtividade acadêmica e equilíbrio entre vida profissional e pessoal.
A conclusão é de que, apesar dos progressos na garantia de direitos e na participação das mulheres na pesquisa odontológica, ainda existe um contexto complexo de desigualdade de gênero em termos políticos, econômicos e sociais. O artigo sugere que é preciso implementar políticas e avaliar resultados rapidamente. Além disso, afirma que a comunidade científica precisa estar ativamente envolvida nessa mudança, abordando estereótipos sociais e expectativas culturais.
A própria entidade observou uma mudança na composição de gênero em sua liderança em seus quase 100 anos de existência. Nos primeiros 60 anos de IADR, não houve presidentes mulheres, mas a participação delas começou a crescer em 1980. Recentemente, houve uma sequência de quatro presidentes mulheres, entre 2010 e 2014 e, atualmente, as três principais instâncias de poder são ocupadas por mulheres.
Em 2011, a organização criou a Rede Mulheres na Ciência (em inglês, Women in Science Network, ou WISN), para apoiar e capacitar mulheres membros da IADR com o objetivo de mudar a cultura na pesquisa odontológica e alcançar a paridade de gênero na força de trabalho de pesquisa. Além de realizar workshops e congressos, a WISN oferece prêmios para jovens cientistas e também para mulheres mentoras que são exemplos a ser seguidos.
#SCIENTISTSWITHLIPSTICK
Em 2018, a periodontista e pesquisadora Magda Feres recebeu o IADR Women in Science Award for Distinguished Female Mentor, um reconhecimento pelas inúmeras contribuições que tem feito em sua carreira, especialmente na orientação de mulheres. Ela também foi presidente do Periodontal Research Group da IADR de 2017 a 2018, da International Academy of Periodontology entre 2017 e 2019, e, atualmente, é vice-presidente da Latin American Oral Health Association.
Recentemente, Feres criou um movimento no Instagram chamado #ScientistsWithLipstick, que pode ser traduzido como Cientistas de Batom. Seu objetivo é valorizar a autoestima das mulheres pesquisadoras e reforçar que aparência e competência podem coexistir. “A ideia é mostrar que não devemos ser julgadas pela nossa vaidade, e que podemos usar ou não batom, salto alto e o que mais quisermos”, diz ela à Conexão Unna. Já são mais de 300 publicações com a hashtag na rede social.
Feres conta que em sua carreira teve, em suas palavras, o privilégio de ser respeitada e valorizada. Mesmo assim, já teve suas conquistas questionadas, com insinuações de que o marido ou outros homens teriam facilitado o seu caminho por fatores que vão além da competência. “A mudança está acontecendo, mas é muito lenta. Tenho sido procurada por muitas mulheres e meninas que me identificam como modelo e se inspiram na minha trajetória, e eu vejo que há muito para ser feito ainda. Há muitas mulheres na Odontologia, porém poucas chegam à liderança, e isso acontece no mundo inteiro.”
Com doutorado em Biologia Oral pela Universidade de Harvard e pós-doutorado em Microbiologia Oral pelo Forsyth Institute, ela é coordenadora do Programa de Mestrado e Doutorado em Odontologia da Universidade Guarulhos, um dos poucos programas de excelência do país, segundo a Capes. Sua área de pesquisa é o diagnóstico e tratamento de diferentes infecções periodontais. Sua atuação tem ênfase na realização de ensaios clínicos aleatorizados que avaliam efeitos clínicos e microbiológicos dos antibióticos sistêmicos no tratamento periodontal. Seus estudos ajudaram a mudar protocolos clínicos no tratamento das periodontites em todo o mundo.
Um dos seus estudos clínicos recebeu o Prêmio de Melhor Pesquisa Clínica da American Academy of Periodontology, em 2003. Outro foi premiado pelo grupo F1000 Prime em 2014 e teve sua importância reconhecida na área. A produção é um de seus focos, tanto que ela é editora associada do International Dental Journal (FDI, EUA) e participa do conselho editorial de diversas revistas científicas.
Autora de cerca de 160 artigos completos publicados, teve um de seus textos entre os cinco mais citados daqueles publicados no J. Clinical Periodontology em 2010 e outro entre os três mais baixados do J. Dental Research em 2014. Além disso, é convidada a apresentar resultados das suas pesquisas em todo o mundo: foram 25 aulas internacionais ministradas a convite nos últimos cinco anos (EUA, Europa, América Latina e Ásia). “Infelizmente, na imensa maioria desses congressos a participação feminina é mínima, e muitas vezes eu sou a única mulher na grade científica”, diz.
“A mudança está acontecendo, mas é muito lenta. Vejo que há muito a ser feito ainda. […] Há muitas mulheres na Odontologia, porém poucas chegam à liderança, e isso acontece no mundo inteiro.”
A VOZ DAS MULHERES NA CIÊNCIA
As cientistas estão sendo mais escutadas, literalmente. Desde julho, o podcast Virgínias na Ciência, criado por quatro pesquisadoras da Universidade de São Paulo (USP), convida mulheres a falar sobre seus trabalhos em diversas áreas da ciência. “A gente já discutia como divulgar mais o que é feito dentro da universidade para a sociedade”, explica a cientista Katiuchia Uzzun Sales, professora do Departamento de Biologia Celular e Molecular e Bioagentes Patogênicos da Escola de Medicina de Ribeirão Preto da USP.
A ideia de divulgar não apenas a ciência, mas aquela feita por mulheres, veio da experiência das próprias pesquisadoras. “Eu sempre escuto que, como mulher, vou ter de trabalhar duas vezes mais do que os homens. Isso me deixa indignada”, conta Sales, que comanda o podcast ao lado das colegas Rita Tostes, Vânia Bonato e Alline Campos, também professoras e pesquisadoras. O nome do programa é inspirado na escritora Virgínia Woolf, uma das pioneiras na discussão de gênero.
Cientista na área de biologia tecidual e genética, Sales diz que fazer as entrevistas tem sido uma fonte de inspiração e força. “Ouvir os desafios que elas superaram me ajuda a saber que vai ficar tudo bem. E é isto que a gente busca, incentivar jovens cientistas a partir dessas referências.” Para ela, um dos maiores obstáculos é conciliar a vida pessoal com a profissional.
Isso ficou ainda mais claro depois que se tornou mãe. “Escrevi um projeto de pesquisa para o laboratório quando meu filho tinha apenas 15 dias. Minha licença-maternidade foi muito conturbada e cheia de compromissos. Tive a sensação de estar entrando em um “buraco” do ponto de vista profissional. A licença-maternidade é um período muito importante, mas, mesmo assim, eu tinha uma espécie de “culpa” por não estar produzindo mais e sabia que isso seria contabilizado depois.”
Na sua visão, o reconhecimento da licença-maternidade na avaliação institucional é fundamental. Isso porque a mensuração da produção é um dos principais pontos da carreira científica. “Até pouco tempo, a universidade não considerava esse período na hora de contabilizar a nossa produção, e aí parece um tempo perdido.” A falta de um campo para informar a licença-maternidade no currículo Lattes é outra crítica nesse sentido, e por isso algumas pesquisadoras têm incluído a informação no espaço reservado à biografia.
Um levantamento do projeto Parent in Science, criado em 2017 para discutir a maternidade no universo acadêmico brasileiro, mostrou que a maternidade teve um impacto negativo na trajetória profissional de 81% das mulheres. Foram ouvidas 1.182 pesquisadoras, sendo 921 mães.
COMO PROMOVER A EQUIDADE DE GÊNERO NA CIÊNCIA
Identificar e contemplar as demandas das mulheres é um dos caminhos para melhorar a sua participação na pesquisa. Essa é uma das premissas do Instituto Serrapilheira, primeira instituição privada, sem fins lucrativos, de fomento à ciência no Brasil. “Reconhecemos o impacto da maternidade na carreira científica e como esse percurso é mais desafiador para as mulheres”, afirma Cristina Caldas, diretora de ciência da organização.
Nos editais do Serrapilheira, o prazo de conclusão do doutorado é maior para quem é mãe. As pesquisadoras apoiadas que engravidam ou já têm filhos recebem uma bolsa-maternidade de R$ 10 mil, que pode ser usada para fazer contratações extras no laboratório, por exemplo. E, quando há eventos que exigem viagem, as cientistas com filhos de até 2 anos têm todos os custos da criança e de um acompanhante pagos. A instituição produziu ainda um Guia de Boas Práticas em Diversidade na Ciência, disponível gratuitamente em seu site.
