UMA
GUERRA
INVISÍVEL
A luta contra a infecção cruzada, inimiga constante dos consultórios odontológicos, ganha destaque em tempos de COVID-19. Veja como proteger sua equipe, seus pacientes e a si mesmo
odo instrumento, equipamento e ambiente odontológico, após o atendimento dos pacientes, pode apresentar uma contaminação microbiana elevada, principalmente, se houver a geração de aerossóis. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), ¼ dos pacientes dos consultórios odontológicos albergam micro-organismos que podem ser transmitidos ao cirurgião-dentista e à sua equipe, assim como a outros pacientes. Por esse motivo, a Odontologia ocupa o 3º lugar no ranking das profissões com maior risco de contaminação no trabalho. Com o advento do nos coronavírus (SARS-CoV-2), causador da doença COVID-19, a chamada infecção cruzada ganhou destaque novamente.
O Conselho Federal de Odontologia (CFO) fez o primeiro alerta no dia 14 de março de 2020, três dias após a OMS caracterizar a disseminação global do vírus como pandemia, com o objetivo de reforçar as já conhecidas medidas de prevenção contra infecções cruzadas. No documento, que foi atualizado após o início das transmissões comunitárias, há recomendações de praxe, como a higiene das mãos, o uso de equipamentos de proteção individual (EPI) e a esterilização de instrumentos e dispositivos, somadas a mais algumas recomendações. Realizar um contato prévio com o paciente, por telefone, para averiguar a presença de sintomas de doenças respiratórias e deixar os pacientes a uma distância de pelo menos 1 metro na sala de espera, por exemplo, agora também devem fazer parte da rotina preventiva dos consultórios (veja a lista completa de recomendações nas páginas 16 e 17).
Paralelamente, atendendo à solicitação do CFO, o Ministério da Saúde determinou a suspensão temporária das atividades odontológicas na rede pública, exceto aquela que comprovadamente são de urgência e emergência. Exagero? Para o farmacêutico-bioquímico Evandro Watanabe, professor associado das disciplinas de Biossegurança I e II, do Departamento de Odontologia Restauradora, da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), não, se levarmos em conta a rapidez com que o novo coronavírus se propaga. “Apesar de a taxa de mortalidade da COVID-19 ser aparentemente menor do que a da SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) e a MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), por exemplo, vale salientar que a transmissibilidade desse vírus é alta, e precisa ser contida”, afirma.
Isso se deve, principalmente, ao elevado número de casos de pacientes que não manifestam os sintomas da doença. De acordo com uma pesquisa da Universidade Colúmbia, em Nova York, dois terços das infecções de coronavírus são atribuídos aos pacientes assintomáticos, ou seja, pessoas que contraíram o vírus, mas, como não apresentaram sintomas, continuaram levando a vida normalmente – comparecendo, inclusive, a consultas odontológicas. Além disso, um estudo publicado no The New England Journal of Medicine mostrou que o vírus sobrevive por três horas na forma de aerossol e até dias em certas superfícies.
Ainda assim, sabemos que o dia a dia no consultório não oferece tantos riscos quanto em um pronto-socorro ou hospital, por exemplo. “Só o fato de os pacientes ali não estarem doentes, de modo geral, é uma segurança a mais. Mas é claro que os riscos existem, e os cuidados devem ser constantes o ano inteiro, não apenas em épocas de pandemia como a atual”, explica o biólogo Daniel Santos Mansur, professor doutor do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O que cabe, afinal, aos cirurgiões-dentistas no combate ao novo coronavírus e a outros micro-organismos que podem ser fatais?
Dois terços das
infecções de coronavírus são transmitidos
por pacientes assintomáticos
A EVOLUÇÃO DA BIOSSEGURANÇA
A preocupação da humanidade em minimizar os riscos dos patógenos remonta à Antiguidade. Sabe-se que o exército de Alexandre, o Grande (séc. IV a.C.), por exemplo, fervia a água antes do consumo com o objetivo de proteger os soldados. Existem, também, relatos de inúmeras civilizações antigas que utilizavam sal, aquecimento e secagem para conservar os alimentos. Mas foi somente nos anos 70, na Califórnia, que se discutiram os aspectos de proteção aos pesquisadores e demais profissionais da saúde.
Com o advento das novas tecnologias, muita coisa mudou. Se inicialmente o foco era voltado para o trabalhador, hoje o conceito de biossegurança é mais abrangente. Conforme a definição de Pedro Teixeira e Silvio Valle, em Biossegurança: uma abordagem multidisciplinar (Editora Fiocruz), ela pode ser classificada como “um conjunto de ações voltadas para a prevenção, minimização ou eliminação de riscos inerentes às atividades de pesquisa, produção, ensino, desenvolvimento tecnológico e prestação de serviços, visando à saúde do homem, dos animais, à preservação do meio ambiente e à qualidade dos resultados”.
Em meados dos anos 80, surgiu o primeiro curso de biossegurança com enfoque na saúde, que favoreceu a implantação de medidas a ela relacionadas. Já a Lei de Biossegurança é de 5 de janeiro de 1995. O período, conforme lembra Mansur, coincide com o surgimento da epidemia de HIV no mundo. “Nessa época, ganharam destaque também novas medidas, como a esterilização por meio de autoclave”, afirma.
Além do HIV e do novo coronavírus, entre as doenças que mais apresentam risco na prática odontológica estão hepatites B e C, tuberculose, pneumonia, meningite, gripe, resfriado, herpes, mononucleose infecciosa, virose por citomegalovírus, difteria, tétano, coqueluche, sífilis, candidíase, sarampo e infecções nos olhos, ouvidos e no trato respiratório superior. A infecção cruzada, é importante lembrar, pode acontecer pelo ar ou por meio de objetos e instrumentos contaminados com sangue e/ou saliva. Ela também ocorre por inalação (via equipamentos que produzem aerossóis) e inoculação (com objetos perfurocortantes).
Após a OMS classificar a pandemia, o CFO deu o alerta para que fossem reforçadas as medidas de prevenção contra infecções cruzadas
A boa notícia é que, graças à tecnologia, houve o aprimoramento de produtos odontológicos que, somados aos EPIs, melhoram sobremaneira o controle de infecção. Cadeiras e mochos com revestimentos impermeáveis e laváveis, pontas de equipamentos autoclaváveis, mangueiras lisas e cuspideiras portáteis facilitam a desinfecção e esterilização no dia a dia. Os produtos desinfetantes também se modernizaram ao longo dos anos, com a chegada dos detergentes enzimáticos para a limpeza de instrumentos e de produtos com nanoestruturas de prata incorporadas, que apresentam atividade antimicrobiana – desde o estofamento das cadeiras até sugadores, mangueiras, alças dos refletores, entre outras aplicações.
Nada substitui, porém, o olhar atento dos profissionais em relação às medidas de precaução antes, durante ou após o atendimento, como rotina. “Além disso, o cirurgião-dentista e a equipe profissional devem se atualizar com cursos e treinamentos em biossegurança para realizar as atividades profissionais conforme as normas de assepsia e os procedimentos operacionais padrão (POPs) de limpeza, desinfecção, antissepsia, esterilização, bem como o gerenciamento e descarte de resíduos, visando à garantia de um ambiente biologicamente seguro”, completa a cirurgiã-dentista Ana Maria Razaboni Santos, que, assim como Watanabe, é professora associada das disciplinas de Biossegurança I e II, do Departamento de Odontologia Restauradora, da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto, da USP.
Se as novas diretrizes preconizadas no período pós-COVID-19 vão modificar as condutas nos consultórios odontológicos, assim como o HIV fez há algumas décadas, ainda é cedo para saber. Quando o assunto é biossegurança, no entanto, vale salientar que todo cuidado é pouco. Exemplos mostram que o descuido pode custar vidas, como aconteceu em Nova Jersey, nos Estados Unidos. Quinze pacientes de um cirurgião-dentista norte-americano, atendidos entre 2012 e 2014, foram vítimas de uma endocardite infecciosa, sendo que um deles faleceu, segundo relatou o site do canal CNN. Condenado por violar protocolos de biossegurança, o profissional teve a licença profissional suspensa por cinco anos e foi condenado a pagar US$ 300 mil em multas. Como já bem conhecido pela classe odontológica, esse tipo de infecção pode, sim, ocorrer em tratamentos dentais. Uma pesquisa realizada pela Universidade de Granada (Espanha) com esse tema foi adicionada ao processo judicial, fundamentando o problema técnico.
Infelizmente, não se pode falar o mesmo da COVID-19. O mais importante agora, porém, é evitar o pânico e fortalecer os cuidados na rotina clínica. “É preciso intensificar as ações de combate ao coronavírus em todo o Brasil, considerando que as atividades odontológicas implicam em contato direto, próximo e demorado entre o cirurgião-dentista e o paciente. Essa é uma luta de todos nós”, conclui o cirurgião-dentista Juliano do Vale, presidente do CFO. O aprimoramento técnico, portanto, é tão essencial quanto a conscientização dos riscos. Estamos juntos!
Proteja-se!
Confira um resumo das recomendações do Conselho Federal de Odontologia no combate à COVID-19*
CONTATO PRÉVIO
Realizar contato telefônico antes da consulta e, caso o paciente relate ter sintomas de doenças respiratórias, desmarcá-la e orientá-lo a buscar ajuda médica.
SALA DE ESPERA
Evitar que os pacientes se aglomerem na sala de espera e cuidar para que mantenham, entre si, uma distância de 1 metro.
CASO DE TOSSE
Se algum paciente ou acompanhante apresentar tosse, deve ser orientado a usar máscara cirúrgica.
ANAMNESE
Realizar uma anamnese detalhada antes do início do tratamento, incluindo perguntas que possam indicar algum sinal de alerta para a COVID-19, como febre nos últimos 14 dias; tosse; dificuldade para respirar; ter frequentado locais com aglomerações; ter chegado de viagem há menos de 14 dias; ou ter tido contato próximo com pessoas nessas situações.
FEBRE
Medir a temperatura do paciente. Caso apresente 37,8° C ou mais, ele não deve ser atendido, e sim instruído a procurar o serviço de saúde para cuidados médicos adicionais.
HIGIENIZAÇÃO
Realizar higiene de mãos com frequência, preferencialmente com água e sabão ou, se não houver sujidade visível, friccionando álcool em gel 70% por no mínimo 20 segundos. Lavar as mãos antes e depois da retirada das luvas. Secar as mãos com papel-toalha.
EQUIPAMENTOS DE PROTEÇÃO INDIVIDUAL (EPI)
Proteger membranas mucosas de olhos, nariz e boca durante os procedimentos. Os EPIs deverão ser selecionados de acordo com o tipo de atendimento. Compreendem as luvas, óculos também máscaras e viseiras para proteção facial. Durante a anamnese e o exame clínico, poderá ser usada máscara cirúrgica e óculos de proteção.
MÁSCARAS
Em procedimentos em que serão gerados aerossóis, a máscara de escolha, que oferece melhor proteção, deverá ser a N95 ou a PFF2 ou respiradores reutilizáveis, que deverão ser limpos e desinfetados a cada paciente de acordo com recomendações do fabricante.
BOCHECHOS
Fornecer bochechos com peróxido de hidrogênio a 1% antes de cada atendimento (COVID-19 é vulnerável à oxidação) ou Iodopovidona a 0,2% é o recomendado para reduzir a carga salivar. A clorexidina parece não ser eficaz contra o novo coronavírus.
CUIDADO DA EQUIPE
Cirurgiões-dentistas e equipe deverão ser avaliados e a temperatura aferida duas vezes ao dia, a primeira delas antes de iniciar o trabalho e a outra ao longo do expediente.
CADASTRO OBRIGATÓRIO
De acordo com a portaria nº 639, de 31 de março de 2020, do Ministério da Saúde, todos os profissionais da área da Saúde, incluindo cirurgiões-dentistas com registro em CRO, devem realizar um cadastro obrigatório no site https://registrarh-saude. dataprev.gov.br e realizar um curso on-line de atualização sobre o tema, em link fornecido após o cadastro.
URGÊNCIA OU EMERGÊNCIA?
Seguindo regras da American Dental Association, o Conselho Federal de Odontologia lançou um comunicado com orientações para diferenciar os dois casos. Confira abaixo as linhas gerais:
EMERGÊNCIA
Situações que potencializam o risco de morte do paciente, tais como sangramentos não controlados, celulite ou infecções bacterianas difusas, traumatismo envolvendo os ossos da face, entre outras.
URGÊNCIA
Situações que determinam prioridade para o atendimento, mas não potencializam o risco de morte do paciente, tais como dor odontológica aguda, decorrente de inflamações da polpa, fratura de dente, resultando em dor ou causando trauma do tecido mole bucal, remoção de suturas, necroses orais, entre outras.