Prevenção e atenção são recursos contra eventos adversos

Complicações nos consultórios podem ser prevenidas com uma boa anamnese e cuidados durante o atendimento

Infelizmente, a maioria dos que procuram um cirurgião-dentista precisa resolver algum problema, como um dente quebrado, sangramento gengival e dores dentárias, por exemplo, mas pode sair de lá com uma questão bem mais séria, que ultrapassa os limites da boca. Os eventos adversos (EAs) são um risco e uma realidade na prática odontológica, algo que poderia ser evitado — ou, pelo menos, minimizado — com a anamnese detalhada do paciente e prudência na realização do tratamento.

O Glossário de Conceitos e Referências de Segurança do Doente, parte do relatório técnico Estrutura Conceitual da Classificação Internacional sobre Segurança do Doente, da Organização Mundial da Saúde, apresenta definições para evento adverso: “resultado indesejado para o doente que pode ou não ser consequência de um erro”, “dano que foi causado no decurso da prestação de cuidados e que resulta em incapacidade mensurável”, “evento indesejável que ocorre no decurso da prestação de cuidados de saúde e que produz uma alteração mensurável no estado do doente”, entre outras.

Resumidamente, poderíamos dizer que eventos adversos são incidentes inesperados, indesejados e diretamente associados aos cuidados de saúde prestados ao doente, sem estarem associados a emergências médicas, ou seja, situações que podem envolver um simples incômodo de dor e sensibilidade, mas também são capazes de deflagrar até uma parada cardiorrespiratória ou mesmo levar à morte.

“Infelizmente, muitos colegas ainda acreditam que poucas e raras são as complicações em Odontologia. Muitos deles nem ‘ficam sabendo’ do desdobramento, pois o paciente acaba em um serviço hospitalar”, comenta Márcio de Moraes, professor livre-docente da área de Cirurgia Buco-Maxilo-Facial na FOP-Unicamp. Essa é uma das razões que dificultam a obtenção de estatísticas reais de casos do gênero, somada às especificidades das regiões geográficas e aos grupos populacionais com acesso a diferentes níveis de atendimento pelo Brasil afora.

Beatriz Bussab, cirurgiã pós-graduada em prótese dentária e fundadora da Dent.AI, lembra que a incidência de eventos adversos ainda pode estar relacionada às condições de saúde dos pacientes e às práticas adotadas pelo profissional. Com a ausência de registros fiéis de casos, resta considerar estimativas feitas nos consultórios para se ter noção do volume de incidentes. Segundo a profissional, estima-se que reações alérgicas a anestésicos locais atinjam menos de 1% dos pacientes, enquanto respostas negativas a materiais utilizados no dia a dia da profissão podem chegar a até 3% dos casos. Infecções são menores que 1% no local da injeção e de 1% a 5% no pós-operatório — dependendo do procedimento e dos cuidados subsequentes.

As lesões de tecidos, cortes ou abrasão dos tecidos moles costumam ocorrer em cerca de 1% a 3% dos casos, e as queimaduras, em menos de 1% deles. Quanto a complicações anestésicas e reações adversas à anestesia, estima-se que aconteçam em cerca de 1% e 2% dos atendimentos, e os casos de hemorragia pós-procedimento variam de 1% a 5%. A frequência de fratura de instrumentos é de 1% a 5%, com maior possibilidade em processos endodônticos.

De acordo com o professor Márcio de Moraes, da Unicamp, e de Maria Júlia Assis Vicentin Calori, residente em Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial na FOP-Unicamp, tem sido percebido um aumento significativo de intercorrências — pelo menos nos plantões mantidos em cinco hospitais, além da Faculdade de Odontologia de Piracicaba. “O caso mais clássico é o colega iniciar tratamento endodôntico e manter o dente ‘aberto’ ou protelar o tratamento inicial e manter apenas medicação que, por muitas vezes, é só um anti-inflamatório ou analgésico. Mesmo o uso de antibiótico não substitui a atuação na causa”, diz Maria Júlia.

O mesmo ocorre com tratamentos em terceiros molares. Dois erros frequentes são a extração em fase de infecção aguda (pericoronarite) ou o pós-operatório inadequado. Mais constatações envolvem os pacientes que têm alterações sistêmicas importantes, como osteoporose, ou que estão em tratamento de câncer, e que utilizam medicamentos antirreabsortivos.

Gabriela R. M. Nicolellis, professora assistente na pós-graduação em Dentística na faculdade São Leopoldo Mandic e fundadora da Clínica GEN, acrescenta que a fratura de raízes durante a extração do siso também é observada com certa frequência, assim como a quebra de lima durante o tratamento de canal e de raízes e falhas de implantes, na osteointegração — informações que, nem sempre, o cirurgião-dentista recebe em sua totalidade.

“Carlos Bueno, uma referência em publicações científicas em Endodontia, relata que aproximadamente 1,5% das limas fraturam durante o tratamento endodôntico. Muitas vezes, o fragmento não causa danos ao dente, mas, se surgir uma lesão radicular, a cirurgia apical é indicada para remover a lima fraturada”, lembra.

Já a taxa de insucesso dos implantes, com falhas na osteointegração, é de aproximadamente 5%. “Por isso, os pacientes devem ser alertados de que os implantes podem ser perdidos mesmo após a cirurgia de colocação”, observa Gabriela.

POR TRÁS DOS EVENTOS ADVERSOS

O Brasil tem mais de 600 cursos de Odontologia (conforme consulta ao e-MEC) e 416 mil dentistas (segundo dados do Conselho Federal de Odontologia). Entretanto, no ranking 2024 das 100 melhores faculdades do mundo, divulgado em abril pela Quacquarelli Symonds (QS), empresa britânica especializada em educação, apenas 7 instituições brasileiras que oferecem o curso entraram na lista publicada.

“É difícil precisar o motivo da ocorrência, mas talvez — fazendo somente uma especulação —, isso ocorra porque o Brasil tem hoje mais faculdades de Odontologia que todos os outros países do mundo. Estamos formando bem nossos alunos? Eles buscam pela formação de princípios básicos ou estão mais interessados nos procedimentos estéticos e cosméticos?”, questionam os profissionais da Unicamp.

De acordo com Andrea Viana Vidal, endodontista e implantodontista, professora de cursos de especialização do Capacitè Instituto, em Teresópolis (RJ), e do Instituto de Saúde e Educação (ISE), em Juiz de Fora (MG), os EAs normalmente estão associados a erros na técnica e na aplicação de força excessiva ou mesmo na reutilização de utensílios. Já Beatriz Bussab pontua que o quadro de saúde de um paciente, alergias medicamentosas, informações omitidas na anamnese, má alimentação antes do atendimento e uso de instrumentos antigos e com bastante uso também são fatores que devem ser considerados.

ANAMNESE É DE EXTREMA IMPORTÂNCIA

A maioria das complicações nos consultórios odontológicos podem ser evitadas com atenção e criteriosa consulta. “‘Perder tempo’ em conhecer o paciente é o melhor caminho. Na prática de muitos anos e no dia a dia dentro da universidade e em consultório particular, vemos que grande parte das intercorrências se deve à falta de atenção aos sinais que o paciente apresenta, seja na conversa, seja no exame físico”, comenta o professor Márcio de Moraes.

Toda prevenção deve ter início na consulta. Porém, ter conhecimento básico para saber direcionar o atendimento quando surge uma hipótese de evento adverso é fundamental. “Uma situação é o paciente ‘contar’ o que tem, mas, muitas vezes, omite toda condição de saúde. Por isso, é nosso dever ‘explorar’ com perguntas, que podem indicar uma situação relevante”, diz.

Para a profissional Andrea Viana Vidal, é muito importante o profissional fazer uma anamnese muito bem-feita quando o paciente chega ao consultório para identificar se ele tem algum problema, se fez ou faz algum tratamento, se tomou alguma medicação que possa comprometer a cicatrização óssea, por exemplo. Pode parecer um gasto de tempo que compromete o andamento da consulta, mas trata-se de um meio eficaz de evitar os riscos.

Sistematizar o atendimento também contribui. De acordo com Moraes e Calori, ao seguir uma sequência, consegue-se “moldar” o paciente para as modificações de conduta. “A observação de sinais, como o andar, alterações da mucosa e da pele, e relatos de sintomas são de importância crucial”, complementam. É sempre bom lembrar que, para determinadas situações, há protocolos específicos, como nas consultas com diabéticos ou pessoas em tratamento oncológico.

O QUE FAZER SE ACONTECER UM EA?

Medidas preventivas de autocuidado e visitas periódicas determinadas pelo cirurgião-dentista também ajudam a evitar a ocorrência de EAs. Mas, se eles ocorrerem, não há muito o que discutir: diante de um evento adverso, o profissional deve encaminhar o paciente o quanto antes para o atendimento especializado e/ou pronto-socorro, depois de prestar os primeiros socorros ainda no consultório, quando pertinentes.

O mais correto e indicado é que toda a comunicação com a pessoa atendida seja clara e verdadeira, sem esconder dela a situação. “Deve-se sempre falar a verdade e ser franco com o paciente e sua família. Em nosso serviço, já atendemos pacientes com uso de medicações não indicadas — diabéticos utilizando cortisona de horário para tratamento de infecção, implantes em seio maxilar, com fratura de mandíbula, com fratura de agulha — e que não sabiam o que havia, somente nos procuraram para solucionar o incômodo”, afirma Moraes.

RISCOS AUMENTAM COM HARMONIZAÇÃO

Os tratamentos de harmonização facial, que têm feito parte da rotina de muitos consultórios odontológicos, estão refletindo, também, nas ocorrências de EAs. Moraes e Calori, da FOP-Unicamp, revelam que têm acompanhado complicações relacionadas à falta de treinamento. Na opinião deles, cursos de poucas horas ou de fins de semana “habilitam” colegas da área a adotarem a técnica, fazendo-os acreditar que são raras as possíveis complicações, o que não é verdade.

Andrea Viana Vidal tem opinião parecida, visto que há muitos odontólogos sem técnica e sem treinamentos adequados. “Volta e meia recebemos pacientes com problemas sérios de necrose, no nariz e no lábio, porque o dentista ou outro profissional habilitado colocam o material no lugar errado, no plano errado”, cita.

TIPOS E EXEMPLOS DE EVENTO ADVERSO

Fonte: Corrêa CDTSO, Mendes W. Proposta de um instrumento para avaliar eventos adversos em odontologia. Cad. Saúde Pública. 2017; 33(11):e00053217. doi: 10.1590/0102-311X00053217.

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