

Cuidado em rede
Enxergar o paciente de forma integral é essencial para garantir tratamentos seguros e eficientes. Para isso, é fundamental que o cirurgião-dentista possa trabalhar em conjunto com profissionais de outras áreas da saúde
Imagine que uma criança com certo tipo de necessidade especial chegue ao consultório de um odontopediatra para fazer uma avaliação de saúde bucal. O profissional precisará realizar uma anamnese cuidadosa para entender quais são as condições preexistentes, possíveis riscos e limitações e o quadro físico e mental geral, antes de recomendar e executar qualquer tratamento. Além disso, dependendo da complexidade do caso, é muito provável que seja necessário o trabalho em conjunto com fonoaudiólogos, nutricionistas, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais, entre outros, para abordar questões referentes à mastigação, à fala e à respiração. E esta é apenas uma de várias situações em que um cuidado integrado de um cirurgião-dentista com outras especialidades em saúde é indispensável.
A abordagem multidisciplinar faz toda a diferença, tanto em termos de resultados como de segurança, em tratamentos de pacientes oncológicos, cardiopatas, diabéticos e hipertensos, entre outros. A cirurgiã-dentista Juliana Bertoldi Franco, coordenadora do Serviço de Odontologia do Instituto da Criança e do Adolescente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFM-USP) e presidente da Câmara Técnica de Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CROSP), vive isso todos os dias. “Hoje, trabalho com pacientes com deficiência e atuo na área de odontologia hospitalar. Na minha área de atuação, interajo muito com médicos porque lido com essa complexidade”, diz ela. “Trabalho muito em conjunto com fisioterapeutas, nutricionistas, enfermeiros, fonoaudiólogos, farmacêuticos, assistentes sociais”, enumera.
Embora em um ambiente hospitalar, onde já existem diversos tipos de profissional de saúde trabalhando em equipe, seja mais fácil imaginar a abordagem interdisciplinar, essa colaboração também pode – e deve – ocorrer nos consultórios. “É mais reduzido porque, geralmente, o paciente vai ao consultório atrás de procedimentos odontológicos convencionais, então, a interdisciplinaridade costuma estar relacionada às especialidades da Odontologia”, aponta Juliana.
Um periodontista pode trabalhar em conjunto com um especialista em traumatologia bucomaxilofacial ou com um implantodontista, com um ortodontista, por exemplo, a depender da condição e das necessidades de cada caso. “Existem também as situações em que se faz necessária a busca de um aval clínico, que pode ser importante para conferir segurança a certos procedimentos”, diz a cirurgiã-dentista.
INTEGRAÇÃO INTERDISCIPLINAR E LONGEVIDADE
A integração entre odontologistas de diferentes áreas e com equipes de outras categorias da saúde tem acontecido de forma mais frequente hoje do que era há alguns anos. Uma das explicações? Estamos vivendo mais. “Com o aumento da expectativa de vida da população, mais doentes ficamos. Então, amplia-se a necessidade de colaboração com outros profissionais de saúde nos tratamentos odontológicos”, explica Juliana.
A constatação é detalhada em um artigo de Rosemary Sadamy Arai Shinkai e Altair Antoninha Del Bel Cury, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp-SP), publicado no periódico científico Cadernos de Saúde Pública. “Considerando-se a diversidade e a complexidade do idoso, a atuação de uma equipe interdisciplinar torna-se fundamental, na medida em que participa, analisa e integra conhecimentos específicos de diversas áreas com o objetivo comum de promover e manter a saúde. A assistência à terceira idade é uma área de contato de muitas especialidades; a troca de conhecimentos facilita a atuação de cada elemento do grupo dentro do conceito de ‘descentralização integrada’”, analisa o trabalho.
Por meio de uma linguagem comum às áreas envolvidas, é feita uma intersecção dos conhecimentos entre todas e, então, é realizado um planejamento integrado, em que cada parte desempenha uma função específica no tratamento. O artigo ressalta, no entanto, que a participação da Odontologia nesse contexto de atenção interdisciplinar ainda precisa ser reforçada e ampliada, com mais pesquisas e levantamentos mais específicos de dados. “Muitos idosos não têm acesso ao tratamento odontológico necessário ou adequado”, acrescentam os autores, que também reforçam a urgência de preparar os profissionais para a integração interdisciplinar desde a formação.
CLÍNICA INTEGRADA: A IMPORTÂNCIA DA PROPEDÊUTICA
A avaliação inicial de qualquer paciente começa na anamnese, uma coleta importante de todas as informações possíveis relacionadas ao seu histórico. Cada dado pode ser de fundamental importância para compreender o problema, levantar pontos de atenção e definir o melhor plano de tratamento. Essa etapa, associada ao exame físico extra e intrabucal, incluindo avaliação dos sinais vitais — pressão arterial sanguínea, qualidade do pulso e frequência cardíaca, número de incursões respiratórias e temperatura corporal —, faz parte da propedêutica clínica. “A propedêutica é um conjunto de técnicas e procedimentos por meio dos quais o paciente é ouvido e examinado com a finalidade de se chegar a uma hipótese diagnóstica e estabelecer o plano de tratamento”, explica o professor Eduardo Dias de Andrade, titular da área de Farmacologia, Anestesiologia e Terapêutica da Faculdade de Odontologia de Piracicaba da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp-SP). “Como na Medicina, ela é fundamental para a prática odontológica, pois não se pode tratar de um problema sem antes diagnosticá-lo”, acrescenta.
Como reúne informações gerais sobre a saúde e as condições do paciente, a propedêutica pode ser um primeiro alerta sobre a demanda de incluir a colaboração de outros profissionais da Odontologia e de outras áreas da saúde para estabelecer a conduta mais adequada. “A propedêutica clínica consta como conteúdo obrigatório da grade curricular do ensino de graduação em Odontologia, em que deverão ser ministrados os conhecimentos de patologia bucal, semiologia e radiologia, visando ao diagnóstico das alterações ou doenças bucomaxilofaciais”, diz Andrade.

Quando há o conhecimento prévio de alguma condição sistêmica do paciente identificada no exame clínico e na anamnese, como doenças crônicas e medicamentos que o paciente toma, possíveis alergias, comorbidades, procedimentos cirúrgicos e odontológicos prévios e sua condição clínica geral, pode haver a indicação de uma avaliação médica prévia a uma intervenção. Essa conduta integrada insere o paciente em um contexto amplo e detalhado e assegura a minimização do risco no tratamento odontológico.
MAIS CONHECIMENTO = MAIS SEGURANÇA
Além dos exemplos citados no início da reportagem, de crianças com deficiência ou de idosos, há diversas situações que requerem a troca de informações e o tratamento integrado interdisciplinar. “Os casos são variados e individualizados”, aponta Andrade. “Como exemplo, basta imaginar um paciente que faz uso contínuo de uma droga anticoagulante, com indicação para uma extração dentária. Antes de proceder, é imprescindível que o cirurgião-dentista troque informações com o médico que atende esse paciente, com o objetivo de prevenir o sangramento excessivo durante o procedimento e no período pós-operatório, entre outros cuidados”, observa.
O contato prévio com os profissionais médicos também é indispensável no atendimento a indivíduos com cardiopatias. “É necessário avaliar, em conjunto, a indicação ou não do uso profilático de antibióticos contra a endocardite infecciosa [uma infecção do endocárdio, o revestimento interno do coração], no caso de quem apresenta alto risco para a doença”, exemplifica o professor. Segundo ele, a troca de informações com os médicos auxilia ainda no planejamento de tratamento de pacientes portadores de insuficiência renal crônica ou que apresentam histórico recente de episódios convulsivos ou crises agudas de asma brônquica.
Segundo o professor da Unicamp, aliás, os cardiologistas são os profissionais com quem os cirurgiões-dentistas mais se relacionam, pela incidência cada vez maior de pacientes odontológicos portadores de desordens do sistema cardiovascular, como hipertensão arterial, doenças isquêmicas do coração ou arritmias cardíacas. “Também há outras tantas especialidades médicas às quais o cirurgião-dentista encaminha seus pacientes para a troca de informações, como a otorrinolaringologia, nefrologia, endocrinologia, alergologia e imunologia, reumatologia, ortopedia, neurologia, dermatologia, além da pediatria e geriatria”, cita. “Nos dias de hoje, cumpre destacar a importância da inter-relação do cirurgião-dentista com os médicos oncologistas, ou aqueles que tratam da osteoporose, em virtude do aumento de casos de osteonecrose dos maxilares relacionada ao uso de medicamentos (MRONJ), já que o plano de tratamento dentário exige a participação de todos os profissionais envolvidos”, afirma. (Veja mais exemplos no quadro).
Os profissionais consultados podem ser aqueles que já atendiam o paciente previamente. “Em geral, é recomendado que o cirurgião-dentista se conecte com os médicos que já acompanham o paciente, pois são eles quem dispõem de todo o histórico de saúde e poderão compartilhar informações sobre seu estado físico atual. Se as informações prestadas pelo médico forem dúbias e não transmitirem a segurança necessária para a realização de um determinado procedimento odontológico, o dentista poderá sugerir ao paciente que busque uma segunda opinião ou até mesmo indicar outros profissionais de sua confiança”, explica Andrade. Tudo depende também da preferência do paciente, depois de receber informações claras e objetivas do dentista.
EM CASO DE EMERGÊNCIA
Algumas emergências médicas podem acontecer no consultório do cirurgião-dentista e, dependendo da sua gravidade ou extensão, demandar a participação de outros profissionais de saúde. O ideal é que o dentista seja treinado e habilitado ao Suporte Básico de Vida (BLS) para resolver por si só os casos mais corriqueiros, como a lipotimia, a síncope vasovagal (desmaio) ou o engasgo. “Entretanto, há intercorrências que não poderão prescindir da ajuda médica, pela possibilidade de desfechos muito graves, como o infarto agudo do miocárdio ou as reações anafilactoides”, destaca o professor Andrade. Nestes casos, segundo ele, ocorre uma integração de urgência, por meio do acionamento de um serviço médico, como Samu. É mais um momento em que se fazem necessários o trabalho em equipe e a consciência para agir rapidamente, em busca da ajuda apropriada.
POR TRATAMENTOS MAIS HUMANOS
Para crianças, adultos ou idosos, a ampliação das práticas e o conhecimento sobre atendimento interdisciplinar em Odontologia representa um avanço fundamental para a saúde em geral. Ganha o cirurgião-dentista, que consegue executar seu trabalho de maneira mais precisa e com maior segurança, e ganha ainda mais o paciente, que experimenta uma atenção completa e eficaz, que o compreende como um ser integral. Quando trocam conhecimentos e ideias de diferentes áreas, os profissionais de saúde unem forças e potencializam habilidades para promover ainda mais saúde, bem-estar e qualidade de vida no atendimento odontológico.

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