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A importância dos PRIMEIROS MIL DIAS

O período, que vai desde a fecundação até os dois anos do bebê, representa uma janela de oportunidade para a construção de práticas saudáveis e ações efetivas para a prevenção de doenças crônicas não transmissíveis sistêmicas e bucais

Ana Luiza F. M. de Castro
Emerson Nakao
Rodolfo Francisco Haltenhoff Melani

Imagine-se em uma primeira consulta de uma criança acompanhada do pai (ou da mãe), que começa com o seguinte questionamento: “Esta é a primeira vez de meu filho em um consultório odontológico e eu gostaria de saber como está a saúde bucal dele. Como você pode nos ajudar?”. Essa é, sem dúvida, uma pergunta desafiadora para qualquer dentista, pois o problema inicial que se nota nessa situação é o momento da primeira consulta, que poderia ter acontecido durante a gravidez. Respondê-la de forma satisfatória requer conhecimento e organização dessas informações, para que possam ser transmitidas de maneira mais adequada ao paciente e ao seu pai (ou mãe).

Um recente artigo, de outubro de 2022, publicado pelo Periódico Americano de Saúde Pública (AJPH), o autor, um médico pediatra, aborda a questão dos Primeiros Mil Dias como uma oportunidade perdida pelos médicos pediatras.1 Para entender o motivo e como isso se reflete na Odontologia, primeiramente deve-se entender o que significa esse termo.

Os Primeiros Mil Dias correspondem ao período que vai desde a fecundação até os dois anos do bebê, ou seja, são a soma dos 270 dias da gestação, dos 365 dias do primeiro ano de vida e dos 365 dias do segundo. Nessa fase, o bebê está em pleno crescimento, e é nela que ocorre seu maior desenvolvimento neurológico e imunológico. Portanto, esse período representa uma janela de oportunidade para a construção de práticas saudáveis e ações altamente efetivas para a prevenção de doenças crônicas não transmissíveis sistêmicas e bucais, além de ações que visem melhorar a saúde dos indivíduos, considerando-se que é possível intervir e impactar positivamente no desenvolvimento equilibrado e saudável.2-5

A epigenética (ciência que investiga mudanças na atividade de alguns genes sem modificar a sequência do DNA) leva a crer que fatores ambientais de estilo de vida, tais como alimentação incorreta, estresse, ausência de atividade física, exposição ao fumo e álcool, assim como outros hábitos, sejam capazes de aumentar ou reduzir o risco para eventos adversos (EAs) à saúde da mãe e do bebê, ao longo da vida dele e até mesmo nas gerações futuras. Estudos consideram que é possível intervir e modificar a programação metabólica, não só durante a vida intrauterina, mas também no pós-natal, ativando ou silenciando genes, por meio de práticas saudáveis.2,6

Adotar práticas que promovam a saúde e previnam doenças faz sentido, uma vez que existem cada vez mais evidências que associam as condições de saúde bucal com a saúde sistêmica. Há aproximadamente 300 condições e doenças ligadas de alguma forma à saúde bucal, capazes de desencadear ou piorar certos problemas de saúde, segundo a Dra. Brittany Seymour, professora associada de epidemiologia e política de saúde bucal da Harvard School of Dental Medicine (HSDM).7 A literatura relata correlação positiva entre doença periodontal (periodontite), parto pré-termo (antes de 37 semanas) e baixo peso da criança ao nascer. A microbiota periodontal não ficaria restrita à cavidade bucal e poderia chegar ao útero, causando inflamação. O sistema imunológico aumentaria a produção de prostaglandina, uma substância que ajuda no combate à inflamação, mas induz ao parto prematuro.2,8

Assim, pode-se concluir que existe lógica na interdisciplinaridade entre a Medicina e Odontologia, particularmente durante os Primeiros Mil Dias, como suporta a literatura,2,3 para que seja possível oferecer acompanhamento integral à gestante e ao bebê, além de identificar necessidades específicas e orientar sobre comportamentos de risco.

O papel do cirurgião-dentista durante esse período pode ser dividido em duas fases: o pré-natal odontológico e os cuidados direcionados à família nos dois anos seguintes. Isso pode trazer uma dúvida para o profissional não especialista: se a criança não nasceu, o que um dentista pode fazer por ela? Organizando as informações até agora apresentadas, já é possível responder a essa pergunta.

Como existe uma associação entre doenças e condições sistêmicas, no caso a gravidez, e o estado de saúde bucal da mãe, é possível diminuir o risco para adversidades futuras, como o parto prematuro e todos os problemas a ele relacionados. Esse ato de prevenção é alcançado ao promover-se a saúde por meio de orientações conjuntas entre médicos e cirurgiões-dentistas, direcionando a adoção e a correção de hábitos que impactarão no grau de saúde bucal tanto da criança quanto dos pais, lembrando que a saúde bucal destes é considerada um fator de risco que determina o maior ou menor grau de saúde bucal da criança.

Dessa forma, o cirurgião-dentista deve iniciar seus trabalhos informando como a saúde sistêmica da gestante pode influenciar na saúde bucal do bebê, esclarecendo sobre mudanças na cavidade oral da gestante e sobre os principais problemas bucais, desmitificando o tratamento dentário durante a gravidez, orientando sobre práticas saudáveis, tais como cuidados com higiene bucal e alimentação equilibrada no período gestacional. O profissional também terá oportunidade de instruir sobre a importância do aleitamento materno exclusivo durante os primeiros seis meses do bebê e de uma alimentação complementar equilibrada, advertir sobre consumo de açúcar e orientar sobre uso de bicos e mamadeiras e higiene bucal do bebê.9-13

O atendimento odontológico durante a gravidez pode ser realizado de forma segura e eficaz, sem colocar em risco a saúde da mãe e do bebê. O exame radiográfico pode ser realizado se forem obedecidas todas as medidas de precaução, tais como uso de avental plumbífero, regulação da dose e duração dos raios X. Anestésicos locais podem ser aplicados durante a gestação, de forma segura, desde que sejam verificados o tipo de solução anestésica e o número máximo de tubetes, e desde que se aplique corretamente a técnica anestésica.13

Com essas orientações, justificam-se a elaboração e a realização de um plano de cuidados para a gestante, segundo as alterações bucais mais comuns durante a gravidez, que podem ser assim enumeradas:14

1. DOENÇAS PERIODONTAIS E CÁRIE DENTÁRIA

É importante ressaltar que a gravidez não é um fator determinante para o aparecimento de tais doenças, porém, se houver um descuido com a saúde bucal, as alterações preexistentes tendem a se agravar.

2. AUMENTO DA OFERTA DE CARBOIDRATOS FERMENTÁVEIS E EPISÓDIOS DE VÔMITO DURANTE A GRAVIDEZ

Contribuem para a diminuição do pH bucal e, associados à dificuldade em realizar a higiene oral devido aos enjoos, favorecem o acúmulo de placa bacteriana prolongado, o que por sua vez causa e perpetua a doença periodontal e pode levar ao aparecimento de lesões cariosas na gestante.

3. ALTERAÇÕES HORMONAIS DURANTE A GESTAÇÃO

Induzem ao aumento na vascularização periférica, aumento do fluxo de fluido gengival e da síntese de prostaglandinas e maior permeabilidade dos vasos sanguíneos da gengiva. Estes fatores, associados à presença do biofilme dental, podem dar início a processos inflamatórios ou aumentar a intensidade deles.15

O registro periodontal simplificado, o controle de placa bacteriana, a orientação de higiene bucal, o índice de sangramento à sondagem e a remoção de fatores de retenção de placa somam-se às orientações e são procedimentos alinhados com a estratégia de prevenção e promoção da saúde. Tais cuidados também podem ser estendidos ao pai da criança.

No que diz respeito à alimentação, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que durante a gravidez haja uma dieta saudável, contendo proteínas, vitaminas e sais minerais adequados, obtidos por meio do consumo de alimentos variados.16 Hábitos alimentares saudáveis têm papel fundamental na prevenção de doenças e asseguram reservas biológicas para o parto, o pós-parto e o período da amamentação. Carências nutricionais reduzem a concentração e a biodisponibilidade de micronutrientes e podem influenciar na saúde do bebê.2,17

É importante ressaltar que o desenvolvimento e o funcionamento dos sistemas sensoriais olfatório e gustativo do bebê têm início na vida intrauterina, por causa dos sabores e odores do líquido amniótico. Após o nascimento, é o leite materno que tem potencial maior para influenciar as preferências alimentares do bebê, já que o seu sabor muda de acordo com a dieta da mãe. Sendo assim, quanto mais saudável e variada for a alimentação materna durante a gestação e o período de amamentação, maior será a oferta de sabores para o bebê e a aceitação de novos alimentos na fase da alimentação complementar. Alimentos ultraprocessados e com altos teores de açúcares livres podem afetar negativamente a saúde geral e bucal da mãe e do bebê.2

Aproximadamente no 4º mês de vida intrauterina inicia-se a mineralização dos incisivos decíduos e, até os 3 anos de idade, todos os dentes decíduos estarão irrompidos. Estudos longitudinais parecem estabelecer correlação positiva entre estado nutricional da gestante e desenvolvimento de defeitos do esmalte nos dentes do bebê. Esse é mais um dos motivos para se estabelecerem boas práticas alimentares durante os Primeiros Mil Dias.2

A amamentação exclusiva do nascimento aos seis primeiros meses de vida é recomendada pela OMS. Essa prática proporciona benefícios nutricionais, de desenvolvimento, psicológicos, sociais, econômicos e ambientais, e reduz o risco de várias doenças agudas (otite média, diarreia, infecções respiratórias) e crônicas (sobrepeso, obesidade, diabetes tipo 2). Com relação à saúde bucal, o aleitamento materno pode proteger contra maloclusões na dentição decídua e proporcionar o correto desenvolvimento das estruturas orofaciais.2,4,18

De acordo com sua competência e experiência, os odontopediatras e os demais profissionais da saúde que atendem bebês devem orientar os responsáveis sobre a relação entre consumo frequente de carboidratos e cárie dentária, recomendar fortemente que seja evitado o consumo de açúcares livres, especialmente sacarose, durante os dois primeiros anos de vida, além de incentivar a ingestão de alimentos variados, incluindo vegetais, frutas e grãos.18

A higiene oral da criança deve ser iniciada com o irrompimento do primeiro dente decíduo, evento que ocorre normalmente em torno de 6 a 8 meses de vida, utilizando na escovação creme dental fluoretado em quantidade equivalente a um grão de arroz para crianças de até 5 anos de idade (pelo menos 1000 ppm F).19 O núcleo familiar deve realizar a higiene bucal adequadamente, visando não somente ao controle do biofilme e à prevenção da cárie dentária, mas à adoção do hábito pela criança.20

O uso de chupeta e de mamadeiras é desaconselhado pelo Ministério da Saúde. O hábito de sucção não nutritiva (uso do bico) e sucção nutritiva (uso da mamadeira) está associado à interrupção precoce da amamentação. Além disso, pode ocorrer a “confusão de bicos”, que é descrita como a dificuldade do lactente para realizar a pega correta e a ordenha da mama. Estudos indicam que o risco de desenvolver lesões de cárie é menor em crianças que são amamentadas, quando comparado ao daquelas que usam mamadeiras. O uso de chupetas constitui-se em risco aumentado de surgimento de maloclusões, maior possibilidade de desenvolver respiração oral, alterações na fala e otite média aguda. Também está associado à maior incidência de quadros clínicos e de doenças como diarreia, febre, aftas, candidíase oral, pois as chupetas são consideradas um potencial reservatório de infecções.2

Diante disso, dentistas e outros profissionais da saúde devem concentrar esforços na promoção da saúde nos Primeiros Mil Dias. Em última análise, as ações nesse período têm por objetivo empoderar as famílias para a prevenção de doenças de risco comum, interferindo de forma positiva no ciclo de vida saudável.

REFERÊNCIAS

  1. Essel K. The first 1000 days — A missed opportunity for pediatricians. Am J Public Health. 2022;112(S8):S757-9. doi: 10.2105/AJPH.2022.306999. PMID: 36122310.
  2. Abanto J, Duarte D, Feres M. Primeiros mil dias do bebê e saúde bucal: o que precisamos aprender! Nova Odessa: Napoleão; 2019. 88 p.
  3. Cunha AJLA, Leite ÁJM, Almeida IS. Atuação do pediatra nos primeiros mil dias da criança: a busca pela nutrição e desenvolvimento saudáveis. J Pediatr (Rio J). 2015;91(6): S44-51.
  4. Linhares KA, Pontes NHL, Cunha NMB. Os primeiros mil dias de vida: revisão da literatura sobre a estratégia e as políticas públicas no Brasil. In: XXIX Congresso Médico Acadêmico da UNICAMP – CoMAU – Campinas – SP, 2020.
  5. UNICEF. Disponível em Desenvolvimento Infantil (unicef.org).
  6. Niciura SCM, Buzatto VC. Epigenética – histórico e conceitos. In: Niciura SCM, Saraiva NZ (ed). Epigenética: bases moleculares, efeitos na fisiologia e na patologia, e implicações para a produção animal e a vegetal. Brasília: Embrapa; 2014. p. 15-24.
  7. Salamon M. 7 things your dentist wants you to know. 2023 Jan 01. Harvard School of Dental Medicine. Disponível em: https://www.health.harvard.edu/staying-healthy/7-things-your-dentist-wants-you-to-know.
  8. Louro PM, Fiori HH, Louro Filho P, Steibel J, Fiori RM. Doença periodontal e baixo peso ao nascer. J Pediatr (Rio J). 2001;77(1):23-8.
  9. Souza GC de A, Medeiros RCF, Rodrigues MP, Emiliano GBG. Atenção à saúde bucal de gestantes no Brasil: uma revisão integrativa. Rev Ciênc Plural. 2021;7(1):124-46.
  10. Carvalho WC, Lindoso TKN, Thomes CR, Silva TCR da, Dias A da SS. Cárie na primeira infância: um problema de saúde pública global e suas consequências à saúde da criança. Rev Flum Odontol (IJOSD). 2022;2(58):57-65.
  11. Santos PS. Fatores da prevalência de cárie em crianças de baixa renda e o impacto na qualidade de vida: revisão de literatura. 2021 [Internet]. Disponível em: https://repositorio.animaeducacao.com.br/handle/ANIMA/23668.
  12. Beraldi MIR, Pio MSM, Codascki MD, Portugal MEG, Bettega PVC. Cárie na primeira infância: uma revisão de literatura. RGS. 2020;22(2):29-42.
  13. Vasconcelos RG, Vasconcelos MG, Mafra RP, Alves Jr LC, Queiroz LMG, Barboza CAG. Atendimento odontológico a pacientes gestantes: como proceder com segurança. Rev Bras Odontol. 2012 Jan/Jun;69(1):120-4.
  14. Guimarães KA, Sousa GA, Costa MDM de A, Andrade CM de O, Dietrich L. Gestação e saúde bucal: importância do pré-natal odontológico. RSD [Internet]. 2021;10(1):e56810112234.
  15. Oliveira DWD, Celestino CGC, Corrêa GV, Alencar BM, Flecha OD, Fernandes DRF, Gonçalves PF. Saúde bucal materna associada ao parto prétermo e baixo peso dos recém-nascidos: um estudo transversal. Arq Odontol. 2014;50(2):78-85.
  16. World Health Organization (WHO). Recomendações da OMS sobre cuidados pré-natais para uma experiência positiva na gravidez [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2016 [acesso em 05.fev.2023]. Disponível em: https://apps. who.int/iris/bitstream/handle/10665/250800/WHO-RHR-16.12-por.pdf.
  17. Alimentação na gravidez: nutricionistas orientam sobre hábitos saudáveis. Portal Fiocruz 2014.
  18. Bezerra ACB, Pordeus IA, Fraiz FC. Aconselhamento dietético em odontopediatria. In: Massara MLA, Rédua PCB (org). Manual de referência para procedimentos clínicos em odontopediatria. São Paulo: Santos; 2010. p. 87-92.
  19. Oliveira ML de M, Rösing CK, Cury JA. Prescrição de produtos de higiene oral e aplicação profissional de fluoretos [livro eletrônico]: manual com perguntas e respostas. Belo Horizonte: Editora da Autora; 2022. 241 p.
  20. Fraiz FC, Bezerra ACB, Walter F. Assistência odontológica ao bebê: enfoque em cárie dentária. In: Massara MLA, Rédua PCB (org). Manual de referências para procedimentos clínicos em odontopediatria. São Paulo: Santos; 2010. p. 98-102.

Ana Luiza F. M. de Castro

Especialista em Odontopediatria pela Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Minas Gerais (FOUFMG) e em Auditoria em Serviços de Saúde pela Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp)

Prof. Emerson Nakao

Mestre e Especialista em Prótese Dentária e professor da FFO-Fundecto, fundação conveniada à Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP)

Prof. Dr. Rodolfo Francisco Haltenhoff Melani

Professor titular do Departamento de Odontologia Social e responsável pela área de Odontologia Legal do Programa de Pós-Graduação em Ciências Odontológicas, ambos na FOUSP

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