A saúde bucal e o
aprendizado

Até que ponto a ocorrência de problemas dentários pode influenciar e comprometer o dia a dia das crianças na escola

Se a dor provocada por cáries é capaz de deixar adultos irritados e impacientes, quando o problema acomete crianças, a situação se revela ainda mais crítica. Sem saberem totalmente como lidar com o quadro incômodo, os pequenos vivem momentos estressantes, que refletem no seu dia a dia, inclusive na rotina escolar.

O desconforto desmotiva os alunos a sair de casa e, quando encaram as aulas, não conseguem se concentrar por causa do sofrimento bucal e, provavelmente, à noite maldormida.

A questão pode se prolongar por dias se a família não tem condições financeiras para recorrer a um profissional particular e precisa aguardar uma consulta na rede pública de atendimento. O mesmo ocorre quando pai ou mãe tem de conseguir uma dispensa no trabalho para acompanhar os filhos na visita ao cirurgião.

Apesar de não ser possível obter uma estatística realista do extrato da população brasileira atingido pela situação, visto que foram realizadas no país poucas análises acadêmicas e clínicas sobre o assunto, os escassos levantamentos existentes validam o cenário descrito — mesmo quando exploram dados de outras nações. Pesquisas internacionais igualmente validam o panorama.

De acordo com Tamara K. Tedesco, professora de Odontopediatria da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP), um estudo publicado recentemente por docentes da entidade, em parceria com outras instituições1, mostra que crianças com problemas bucais e relato de impacto negativo na qualidade de vida relacionada à saúde bucal apresentam notas e frequência escolares mais baixas do que as de outras que não enfrentam tais complicações.

A especialista observa que os achados corroboram pesquisas anteriores2 que já identificaram uma questão similar: quando crianças e adolescentes apresentam lesões de cárie não tratadas, isso tem um reflexo considerável no dia a dia, e tal condição pode contribuir para um alto absenteísmo e um baixo desempenho escolar.

Mais uma possível explicação1 para tais associações é que crianças com traumatismo dentário e maloclusão podem revelar preocupações estéticas, o que afeta demais seu bem-estar pessoal e a sua autoestima.

“Problemas bucais podem resultar em dor e sofrimento, tanto psicológico como físico, levando à ansiedade e ao estresse, à dificuldade em prestar atenção nas aulas, bem como à piora na qualidade de vida relacionada à saúde bucal”, observa Tamara.

A especialista resgata dados do estudo Global Burden of Disease (GBD), que mostram que as lesões de cárie não tratadas em dentes decíduos fazem parte dos dez problemas de saúde mais prevalentes, afetando cerca de 621 milhões de crianças em todo o mundo.3

Além do mais, a cárie é considerada a quarta doença crônica mais custosa em termos de tratamento, refletindo iniquidades sociais generalizadas — o que é constatado, especialmente, em países de baixa e média renda.4

A professora doutora Alexandra Mussolino de Queiroz, do Departamento de Clínica Infantil da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (Forp-USP), especialista em Odontopediatria, reforça que, além da cárie e da maloclusão, os principais problemas dentários que costumam afetar o cotidiano infantil envolvem traumatismos e outras ocorrências, como disfunções temporomandibulares, bruxismo, erosão dentária e defeitos do esmalte.

“Vale ressaltar que, quanto maior a severidade do problema bucal, maior parece ser seu impacto negativo sobre o desempenho escolar, ou seja, uma lesão de cárie profunda, que causa grande destruição dentária e dor, prejudica mais a vida da criança que uma lesão de cárie pequena”, destaca.

OCORRÊNCIA NO DIA A DIA

Nádia Salem, mestre em Odontopediatria pela USP, não está envolvida em pesquisas acadêmicas, mas identifica os problemas na rotina clínica. Responsável técnica pela Associação Israelita Fortunée de Picciotto, instituição privada sem fins lucrativos, que presta atendimento odontológico gratuito a crianças cujas famílias estão em situação de vulnerabilidade em São Paulo, ela conta que pacientes com muitas lesões de cárie nos dentes anteriores relatam que não querem ir à escola por causa do bullying que sofrem.

O comprometimento estético é uma das principais queixas que ela ouve, tanto dos pais quanto, eventualmente, das próprias crianças. “Elas ainda deixam de sorrir e se alimentar corretamente, ficam mais introspectivas ou faltam às aulas por sentir dor ou desconforto”, afirma.

No cotidiano do consultório, que funciona no bairro do Bom Retiro, região central da capital paulista, a cárie é o problema predominante. “Também deparamos com doenças gengivais, como gengivite, e maloclusões, em menor grau”, revela.

CONTROLANDO O PROBLEMA

Hábitos como má higienização, alimentação rica em açúcar, falta de uso de fio dental e de acompanhamento preventivo com especialistas, somados a fatores socioeconômicos, são as principais causas do cenário problemático, relata Nádia Salem.

Tamara K. Tedesco lembra que evidências científicas confirmam a correlação entre a alta frequência de consumo de açúcares e o desenvolvimento da cárie dentária. Isso sem contar a relação dose-resposta entre a regularidade de ingestão de carboidratos fermentáveis e a ocorrência de cárie dentária em crianças e adolescentes. “Quanto maior a frequência de ingestão de açúcares, especialmente sacarose, maior é o risco de desenvolver lesões de cárie”, pontua.

Embora não haja um limite máximo diário de consumo de carboidratos que se considere adequado, é razoável sugerir que consumir de 5 a 6 refeições por dia não apresenta um maior risco à cárie. “Essa compreensão tem fundamentado a recomendação de manter intervalos regulares entre as refeições, limitando o consumo de açúcar apenas ao momento da sobremesa”, observa.

É importante observar que a quantidade e a frequência do consumo de açúcar estão, geralmente, relacionadas. “Crianças e adolescentes que consomem grandes quantidades de açúcar tendem a fazê-lo com frequência, muitas vezes entre as refeições”, ressalta a docente da FOUSP.

Por outro lado, constata-se que episódios de cárie dentária são menores quando a ingestão de açúcares livres é inferior a 10% do total de calorias ingeridas, o que fundamenta a atual recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS), segundo a docente. Além do mais, considerando-se que os efeitos negativos da cárie dentária são cumulativos, a orientação adicional da entidade é reduzir o consumo de açúcar para menos de 5% do total de calorias ingeridas.

Já para o controle do biofilme, o uso diário de dentifrício fluoretado (concentração de 1.000 a 1.500 ppm de flúor), combinado com a remoção mecânica da placa dentária, é a medida eficaz para controlar doenças na boca, como cárie e doença periodontal, em diferentes faixas etárias. “Recomenda-se realizar a escovação pelo menos duas vezes ao dia desde a erupção do primeiro dente decíduo, como medida eficaz no controle da cárie em dentição decídua ou mista”, ressalta Tamara K. Tedesco.

 

VULNERÁVEIS SÃO ALVO

Doenças bucais são o principal problema de saúde pública no mundo, afetando 3,5 bilhões de pessoas.5 Não à toa, “políticas públicas mundiais precisam ser implementadas com urgência para promover, manter e restabelecer a saúde bucal, principalmente nos países em desenvolvimento e nas populações em situação de maior vulnerabilidade social”, como defende a professora doutora Alexandra Mussolino de Queiroz.

Sabe-se, também, que a cárie resulta de muitos fatores, sendo a questão socioeconômica um dos que mais influenciam o seu surgimento. O fato de a doença ser mais prevalente na população em situação de vulnerabilidade é reflexo de uma relação direta entre condições sociais e financeiras e o maior risco de desenvolvimento de lesões. O baixo nível de escolaridade das famílias é outro fator agravante, que leva à perpetuação de um ciclo em que o mesmo problema afeta diversas gerações.

O cenário é uma importante questão de saúde pública. Entretanto, a iniciativa privada e a própria comunidade escolar podem contribuir para minimizá-lo, sempre incentivando a família a orientar corretamente os pequenos. “Observa-se que o poder público não consegue oferecer atendimento a toda a demanda existente”, opina Nádia Salem, que atua em uma instituição que busca justamente ser ferramenta de auxílio nesse sentido.

“A população em geral precisa ter acesso à informação, para que possa entender a realidade bucal dessas crianças e, assim, consiga contribuir dentro do seu nicho de atuação. Além do mais, o comprometimento da família e responsáveis é a parcela mais importante da promoção de saúde bucal. Eles precisam estar envolvidos com a necessidade daquela criança, cuidando, orientando, incentivando e a levando às consultas periódicas”, defende a responsável técnica pela Associação Israelita Fortunée de Picciotto.

Como lembra a docente da Forp-USP, outra ação eficiente é levar para dentro das escolas programas que abranjam educação, promoção, manutenção e o consequente restabelecimento da saúde bucal. “O sucesso dessas iniciativas depende do esforço de diferentes setores e da ação conjunta de diversas pessoas e profissionais, tais como o setor público, dentistas, técnicos em saúde bucal, educadores, pais e responsáveis, entre outros”, elenca.

Essa é a proposta do curso online e gratuito “Educação em Saúde Bucal”, direcionado para professores do ensino básico e organizado por docentes da disciplina Odontopediatria da Forp-USP, na plataforma Moodle, em que são oferecidos cursos de extensão da USP. A intenção é difundir conhecimentos sobre o tema e sobre formas de prevenção de doenças.

FALTAM ESTUDOS APROFUNDADOS

Para a professora doutora Alexandra Mussolino de Queiroz, a influência dos problemas de saúde bucal no aprendizado é uma questão relevante, mas a literatura científica ainda precisa explorá-la mais.

Ela comenta que, ao se pesquisarem os termos “performance escolar” e “saúde bucal”, encontram-se pesquisas que têm sido conduzidas com o propósito de elucidar essa relação. Segundo ela, uma revisão sistemática da literatura e meta-análise de 2019,6 publicada na revista científica internacional Journal of the American Dental Association (JADA), analisou 2.041 estudos entre os anos de 1945 e 2017, tendo selecionado apenas 14 deles, devido à qualidade variável que apresentavam.

Os resultados sugeriram que a saúde bucal precária de um indivíduo estava associada ao aumento da probabilidade de ele ter pior desempenho acadêmico e de absenteísmo escolar. “Os autores enfatizaram que a preponderância de estudos transversais, as preocupações com a confiabilidade dos resultados e o alto risco de viés limitaram a força dos resultados, e questionamentos sobre o impacto da saúde bucal no aprendizado permanecem abertos”, comenta a docente da Forp-USP.

Isso pede mais estudos longitudinais e com rigor metodológico, inclusive nas diferentes regiões do país, pois a literatura nacional é relativamente escassa. Há também a necessidade de esclarecer pontos importantes, como os tipos de problema bucal que impactam mais a aprendizagem, se a aprendizagem de crianças em fase de dentição decídua também é comprometida, se crianças cuja família tem condição socioeconômica mais precária são mais impactadas, e assim por diante.

REFERÊNCIAS:

  1. Mendes FM, Knorst JK, Quezada-Conde MDC, Lopez EF, Alvarez-Velasco PL, Medina MV, et al. Association of children’s oral health and school environment on academic performance in 12-year-old schoolchildren of Quito, Ecuador. Community Dent Oral Epidemiol. 2024;52(2):196-206. Epub 2023 Oct 1. PMID: 37779338.
  2. Karki S, Päkkilä J, Laitala ML, Humagain M, Anttonen V. Influence of dental caries on oral health-related quality of life, school absenteeism and school performance among Nepalese schoolchildren. Community Dent Oral Epidemiol. 2019 Dec;47(6):461-469. PMID: 31292990.
  3. Kassebaum NJ, Bernabé E, Dahiya M, Bhandari B, Murray CJ, Marcenes W. Global burden of untreated caries: a systematic review and metaregression. J Dent Res. 2015;94(5):650–8. PMID: 25740856.
  4. Wen PYF, Chen MX, Zhong YJ, Dong QQ, Wong HM. Global Burden and Inequality of Dental Caries, 1990 to 2019. J Dent Res. 2022;101(4):392-9.
  5. Watt RG, Daly B, Allison P, Macpherson LMD, Venturelli R, Listl S, et al. Ending the neglect of global oral health: time for radical action. Lancet. 2019 Jul 20;394(10194):261-72. doi: 10.1016/S0140-6736(19)31133-X.
  6. Ruff RR, Senthi S, Susser SR, Tsutsui A. Oral health, academic performance, and school absenteeism in children and adolescents: A systematic review and meta-analysis. J Am Dent Assoc. 2019;150(2):111-21.e4.
  7. Almeida RF, Leal SC, Mendonça JGA, Hilgert LA, Ribeiro APD. Oral health and school performance in a group of schoolchildren from the Federal District, Brazil. J Public Health Dent. 2018;78(4):306-12. PMID: 29752807.
  8. El-Sayed MH, Osman KH, Nour ALBIE. Prevalence of dental caries and its impact on the academic performance of Sudanese Basic school children, AL-Sahafa Residential Area (2013-2014). J Am Sc. 2015;11(4):195-203.
Scroll to Top