OBE

Ainda devemos remover todo tecido
cariado em dentes permanentes?

Um tratamento minimamente invasivo pode oferecer uma alternativa mais eficaz, resultando em maior preservação da estrutura dentária. Veja o que dizem as últimas pesquisas sobre o tema

Prof. Emerson Nakao
Mestre e Especialista em Prótese Dentária e professor da FFO-Fundecto, fundação conveniada à Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP)

Prof. Dr. Rodolfo Francisco Haltenhoff Melani
Professor associado do Departamento de Odontologia Social e responsável pela área de Odontologia Legal do Programa de Pós-Graduação em Ciências Odontológicas, ambos na FOUSP

Para muitos, ainda nos dias de hoje, o gerenciamento de tecido cariado tem um só caminho: o da remoção total, deixando os possíveis desdobramentos, que são aceitos como parte do processo, para serem tratados em um segundo momento. Certamente, o próprio título deste artigo não só causa desconforto em alguns como também desperta dúvidas em outros, que já ouviram falar dessa conduta, mas não a utilizam em sua prática diária, provavelmente por insegurança.

Nota-se na linha do tempo da literatura sobre o tema que o questionamento sobre a remoção de tecido cariado esteve presente desde a primeira metade do século XX, quando, em 1943, Besic1 publicou um estudo intrigante, que constatou queda significativa nos níveis bacterianos (lactobacilos e estreptococos) em lesões de cáries de fóssulas e fissuras seladas com guta-percha condensada e coberta com cimento de fosfato de zinco. Na década seguinte, com o advento da técnica do ataque ácido por Michael G Buonocore,2 em 1955, houve a evolução dos materiais para o que hoje conhecemos como selantes.

A partir dos anos 1980, nota-se um crescente número de pesquisas sobre o tema, que evoluiu ao longo do tempo, observando-se, a partir de 2010, diversos estudos que enalteciam as vantagens de não remover totalmente o tecido cariado, mas careciam de mais evidências (estudos clínicos randomizados). Nos dias de hoje, e para a surpresa de muitos, esse procedimento já é considerado como sobretratamento,3 e não é mais recomendado.4

A abordagem terapêutica tradicional para o manejo de lesões cariosas, ou seja, a remoção total do tecido comprometido, tem reconhecidamente um alto custo econômico e biológico,5 pois envolve um tempo operatório maior, o uso de anestésico local, maior nível de estresse e maior risco de envolvimento endodôntico ligado à profundidade da lesão cariosa, o que, por sua vez, traz consigo questões relacionadas à restauração final do dente.

Assim, um tratamento minimamente invasivo pode ser uma alternativa atraente para o manejo de lesões cariosas de maneira mais conservadora e eficaz, resultando em maior preservação da estrutura dentária. Quando se fala em não remover totalmente o tecido cariado, qualquer que seja a técnica adotada (quadro 1), é importante entender como essa ideia surgiu, além de verificar na literatura quais são as indicações e os benefícios que essa abordagem oferece em relação à técnica convencional (remoção total do tecido cariado), e se pode trazer malefícios aos pacientes.

Quadro 1: As três abordagens técnicas para a remoção de tecido cariado sob a ótica da Odontologia Minimamente Invasiva.

Em fevereiro de 2015, um importante relatório de consenso4,6 sobre terminologia e recomendações referentes ao procedimento de remoção de tecido cariado e gerenciamento de lesões cariosas cavitadas foi publicado após reunião da International Caries Consensus Collaboration (ICCC), sediada em Leuven, na Bélgica, composta de 21 especialistas em cariologia de 12 países da América do Norte e do Sul, da Europa e da Austrália.

“O manejo de lesões cariosas cavitadas deve focar em deter ou controlar lesões por meio de tratamentos restauradores minimamente invasivos”

A cárie não deve ser mais entendida somente como uma doença resultante de uma mudança ecológica do biofilme dental, uma disbiose (desequilíbrio),4 mantida por uma dieta também desequilibrada,7 mas também comportamental.8 Nesse cenário, o cirurgião-dentista tem o papel de orientar tanto a adequada higienização como o consumo inteligente de carboidratos fermentáveis e tratar as lesões controlando sua atividade por meio de uma eficiente técnica de isolamento dos microrganismos cariogênicos do meio bucal e da restrição do acesso a carboidratos, o que leva à sua inativação.4

Consequentemente, a cárie dentária não é uma doença infecciosa que precisa ser “curada” pela remoção de bactérias ou, menos ainda, de determinada espécie bacteriana. Em vez disso, ela pode ser gerenciada comportamentalmente, controlando seus fatores causadores – ou seja, o fornecimento de carboidratos fermentáveis e a presença e maturação de biofilmes dentários bacterianos. Se, no entanto, tal manejo não for fornecido nem aderido pelo paciente (ou seja, a atividade da lesão não for controlada), o biofilme cariogênico remanescente promove a progressão da lesão, podendo eventualmente levar tanto à inflamação crônica da polpa quanto aos estágios irreversíveis de necrose pulpar e periodontite apical.8

O manejo eficaz da doença cárie é caracterizado pela detecção de lesões precoces e pela avaliação precisa da atividade de cárie e grau de risco e pela prevenção da ocorrência de novas lesões cariosas. O manejo de lesões cariosas cavitadas, por sua vez, deve focar em deter ou controlar (incluindo restaurar) lesões existentes por meio de tratamentos restauradores minimamente invasivos, entre eles a reparação de restaurações defeituosas, em vez de sua substituição total, que gera um decréscimo expressivo do volume dentinário a cada intervenção.

Ao deparar com lesões cariosas, devemos considerar que diferentes estágios e atividades da lesão podem exigir manejos diferentes. Todavia, devemos sempre visar:

  • inativar/controlar o processo da doença;
  • preservar o tecido dentário duro;
  • evitar o início do ciclo de restauração;
  • preservar o dente pelo maior tempo possível.

É importante salientar que não existe uma linha que divide claramente o que é uma lesão higienizável e o que não é. As lesões oclusais podem ser avaliadas visualmente, mas nem sempre é evidente se a superfície está cavitada ou não. Para lesões proximais, pode ser ainda mais difícil realizar uma avaliação visual-tátil conclusiva. De qualquer forma, toda lesão cavitada deve ser inicialmente considerada não higienizável e ativa, até que se prove o contrário. Aconselha-se que, no exame, o(s) dente(s) em questão seja(m) limpo(s) (profilaxia) e seco(s) para uma melhor confirmação do diagnóstico, cuja inspeção visual pode agregar vários métodos, como a separação dos dentes por meio de interposicionamento de um elástico, a utilização da transiluminação e o exame radiográfico. A partir desse diagnóstico, seguem as recomendações apresentadas (quadro 2).

Quadro 2: Recomendações do ICCC 2015 ⁴,⁶ e estudos que as fundamentaram.

Lesões cariosas de dentina cavitadas não higienizáveis, ou seja, aquelas que o paciente não consegue manter livres do acúmulo de placa bacteriana, não podem ser tratadas apenas com remoção de biofilme, remineralização ou selamento. No entanto, na dentição decídua, podem ser convertidas em lesões higienizáveis e tratadas por meio de controle cavitário não restaurador, desde que não tenha havido o comprometimento pulpar irreversível.

Certas lesões oclusais podem parecer clinicamente não cavitadas, mas radiograficamente estendem-se para a dentina de maneira significativa. Se tais lesões não puderem ser detidas apenas pelo controle do biofilme, o selamento da fissura pode ser realizado. Entretanto, a integridade do selante precisa ser monitorada e existe a possibilidade, até que surjam mais evidências, de que um efeito “trampolim” possa levar à falha do selante, sendo necessária uma restauração.

Outra resolução relevante do consenso, esta referente à nomenclatura, foi a de classificar a consistência do tecido dentinário comprometido em dentina amolecida, coriácea (consistência de couro), firme e dura como critério para determinar as consequências clínicas da doença, o que levou à definição de novas estratégias para a remoção de tecido cariado (quadro 3). Essa classificação nos revela os diferentes estágios de desmineralização da dentina e até mesmo seu grau de atividade.

Atualmente, a chamada remoção seletiva para dentina firme é recomendada para lesões rasas ou moderadamente profundas. Já em lesões profundas, ou seja, com extensão próxima à polpa, em dentes com polpa vital, recomenda-se a remoção seletiva para dentina amolecida para evitar a exposição pulpar, permitindo um acompanhamento da evolução do caso.10

Quadro 3: Considerando-se que em uma cavidade não será encontrado somente um tipo de dentina⁹ (Fusayama 1972).

A técnica de remoção stepwise, ou gradual, refere-se a uma técnica de remoção em 2 estágios (consultas): o tecido amolecido é deixado sobre a polpa na primeira consulta e, em seguida, é feito um selamento temporário da cavidade. Para isso, as margens dessa restauração (ionômero de vidro de alta viscosidade) devem estar sobre esmalte e dentina hígidas, removendo-se totalmente o tecido cariado das margens da cavidade, e, após um período entre 6 e 12 meses, a cavidade é acessada novamente e o tecido cariado é removido até a dentina firme. Espera-se que nesse período ocorra uma remineralização (formação de dentina terciária).4 Em outras palavras, dentina desmineralizada, mas estruturalmente intacta, deveria ser preservada porque pode ser remineralizada.11,12

Ainda não há consenso, entretanto, sobre a quantidade de cárie a remover antes de colocar uma restauração para alcançar resultados ideais. O que existe na literatura são evidências de que a remoção seletiva, em comparação com a remoção completa ou quase completa da cárie, pode oferecer benefícios para a manutenção da vitalidade do dente, evitando a formação de abscesso e dor e eliminando, assim, a necessidade de tratamento mais complexo e caro ou eventual perda do dente.13

Tendo esses conceitos em vista, foram definidos em consenso princípios que devem ser seguidos no momento da remoção de tecido cariado:

  • Preservar tecido não desmineralizado e remineralizável;
  • Obter uma vedação adequada da cavidade, garantindo que as margens da restauração em dentina e/ou esmalte se mantenham hígidas, de modo a controlar a lesão e a inativar as bactérias remanescentes;
  • Evitar desconforto/dor e ansiedade odontológica, pois ambos impactam o planejamento do tratamento/cuidado e os resultados. Métodos menos propensos a causar ansiedade odontológica são preferíveis, portanto;
  • Manter a saúde pulpar preservando a dentina residual, o que diminui o risco para irritação pulpar desnecessária, ao mesmo tempo que previne a exposição pulpar (ou seja, vale deixar a dentina amolecida nas proximidades da polpa, se necessário).

Por fim, a restauração de um dente deve ter como objetivos:14

  1. ajudar no controle da placa e, assim, gerenciar a atividade de cárie nesse local específico;
  2. proteger o complexo polpa-dentina e isolar a lesão por selamento;
  3. restaurar a função, a forma e a estética do dente.

Deixar deliberadamente tecido cariado sob restaurações, entretanto, causa certo desconforto aos profissionais, pois levanta questões difíceis de responder sobre a avaliação da saúde pulpar, a reação de outros profissionais caso o paciente mude de dentista e o monitoramento dessas lesões de cárie seladas ao longo do tempo. Ainda assim, isso não deve impedir os profissionais da Odontologia de adotar uma abordagem minimamente invasiva baseada em evidências para a remoção de tecido cariado.

REFERÊNCIAS

1. Besic FC. The fate of bacteria sealed in dental cavities. J Dent Res. 1943;22(5):349-54. doi:10.1177/00220345430220050101.

2. Buonocore MG. A simple method of increasing the adhesion of acrylic filling materials to enamel surfaces. J Dent Res. 1955 Dec;34(6):849-53. doi: 10.1177/00220345550340060801. PMID: 13271655. 

3. European Society of Endodontology (ESE) developed by:, Duncan HF, Galler KM, Tomson PL, Simon S, El-Karim I, Kundzina R, Krastl G, Dammaschke T, Fransson H, Markvart M, Zehnder M, Bjørndal L. European Society of Endodontology position statement: Management of deep caries and the exposed pulp. Int Endod J. 2019 Jul;52(7):923-34. doi: 10.1111/iej.13080. PMID: 30664240. 

4. Schwendicke F, Frencken JE, Bjørndal L, Maltz M, Manton DJ, Ricketts D et al. Managing carious lesions: consensus recommendations on carious tissue removal. Adv Dent Res. 2016;28(2):58-67. doi: 10.1177/0022034516639271. PMID: 27099358.

5. Giacaman RA, Muñoz-Sandoval C, Neuhaus KW, Fontana M, Chałas R. Evidence-based strategies for the minimally invasive treatment of carious lesions: review of the literature. Adv Clin Exp Med. 2018 Jul;27(7):1009-16. doi: 10.17219/acem/77022. PMID: 29962116.

6. Banerjee A, Frencken JE, Schwendicke F, Innes NPT. Contemporary operative caries management: consensus recommendations on minimally invasive caries removal. Br Dent J. 2017 Aug 11;223(3):215-22. doi: 10.1038/sj.bdj.2017.672. PMID: 28798430.

7. Fejerskov O, Nyvad B, Kidd EA. Pathology of dental caries. In: Fejerskov O, Nyvad B, Kidd EA, editors. Dental caries: the disease and its clincial management. 3rd ed. Oxford (UK): Wiley Blackwell; 2015. p. 7-9.

8. Bjørndal L, Ricucci D. Pulp inflammation: from the reversible inflammation to pulp necrosis during caries progression. In: Michel Goldberg, editor. The dental pulp biology, pathology, and regenerative therapies. Berlin (Germany): Springer; 2014. p. 125–39.

9. Fusayama T, Terachima S. Differentiation of two layers of carious dentin by staining. J Dent Res. 1972;51(3):866. doi: 10.1177/00220345720510032601.

10. Rickets D, Innes N, Schwendicke F. Selective removal of carious tissue. Monogr Oral Sci. 2018;27:82-91. doi: 10.1159/000487838. Epub 2018 May 24. PMID: 29794475.

11. Ogawa K, Yamashita Y, Ichijo T, Fusayama T. The ultrastructure and hardness of the transparent layer of human carious dentin. J Dent Res. 1983;62(1):7–10. doi: 10.1177/00220345830620011701. PMID: 6571859.

12. Ngo HC, Mount G, Mc Intyre J, Tuisuva J, Von Doussa RJ. Chemical exchange between glass-ionomer restorations and residual carious dentine in permanent molars: an in vivo study. J Dent. 2006;34(8):608–13. doi: 10.1016/j.jdent.2005.12.012. Epub 2006 Mar 15. PMID: 16540227.

13. Clarkson JE, Ramsay CR, Ricketts D, Banerjee A, Deery C, Lamont T et al. Selective Caries Removal in Permanent Teeth (SCRiPT) for the treatment of deep carious lesions: a randomised controlled clinical trial in primary care. BMC Oral Health. 2021 Jul 9;21(1):336. doi: 10.1186/s12903-021-01637-6. PMID: 34243733.

14. Kidd EA. How ‘clean’ must a cavity be before restoration? Caries Res. 2004;38(3):
305–13. doi: 10.1159/000077770. PMID: 15153704.

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