

Anestésicos em gestantes
Há recursos seguros e eficazes que garantem tranquilidade e proteção para a mãe e para o bebê durante os tratamentos
O acompanhamento odontológico durante a gestação é primordial não apenas para manter a saúde bucal da mulher em dia, mas também para prevenir eventuais complicações obstétricas. Ainda assim, não é raro que as gestantes posterguem tratamentos. De fato, alguns fármacos, assim como outras substâncias, podem prejudicar o feto ao passar pela corrente sanguínea da mãe e atravessar a placenta. Isso leva muitas grávidas a acreditar que o melhor a fazer é deixar os cuidados odontológicos para depois. Contudo, as consultas com o cirurgião-dentista são fundamentais para minimizar os riscos à saúde da gestante e do bebê, e há uma série de medicamentos que podem, sim, ser usados com eficácia e segurança. Tanto que, em 2022, o Ministério da Saúde lançou novas diretrizes, incluindo o encaminhamento das gestantes a consultas com dentistas como uma das etapas do pré-natal. Aqui, a odontopediatra Sandra Echeverria, professora de Ortodontia Preventiva e Odontopediatria na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), que fez parte da elaboração do documento, explica por que é indispensável o acompanhamento odontológico durante a gravidez e esclarece dúvidas sobre o uso seguro de anestésicos neste período.
Qual é a importância de buscar uma avaliação odontológica antes ou durante a gestação?
O Pré-Natal Odontológico (PNO) tem o objetivo de cuidar da saúde da gestante e de orientá-la em relação aos cuidados com a saúde bucal do futuro bebê. O tempo de gravidez, somado aos primeiros dois anos de vida da criança, formam “os primeiros mil dias de vida”, um período fundamental para a prevenção de doenças crônicas não transmissíveis, como câncer, hipertensão e cardiopatias, entre outras. A cárie dentária e a doença periodontal fazem parte desse rol. A doença periodontal, que acomete a estrutura de suporte dos dentes, a exemplo da gengivite e da periodontite, já tem na literatura uma relação estabelecida com complicações obstétricas, como risco aumentado de parto prematuro, bebê com baixo peso e pré-eclâmpsia. Além disso, se a mulher tem uma dor de dente, isso causa um estresse que pode comprometer a saúde sistêmica dela. Sem falar nos potenciais prejuízos à alimentação e ao sono, que comprometem a qualidade de vida da mãe e, consequentemente, afetam o bebê. Há pesquisas que sugerem que filhos de mães que foram submetidas ao pré-natal odontológico e receberam orientações nesse sentido têm risco diminuído de doença cárie da primeira infância. Ou seja, há muitos fatores que justificam a importância de a gestante ser tratada.

O medo da dor ou mesmo de prejudicar o bebê em eventuais procedimentos pode fazer com que uma gestante adie ou deixe de fazer tratamentos importantes?
Quando a gestante dá início ao pré-natal, o obstetra deve encaminhá-la para uma avaliação odontológica. Atualmente, isso acaba funcionando melhor na rede pública, porque a grávida é atendida por uma equipe de saúde da família, da qual o dentista faz parte. Mesmo assim, dados do Ministério da Saúde mostram que apenas 17% das gestantes receberam tratamento odontológico na rede de atenção básica, em 2019, o que é uma porcentagem muito baixa. Existe esse medo de tratar por conta de problemas medicamentosos e riscos da anestesia ou outros medicamentos, por exemplo. Os riscos existem para todos, mas, hoje, há diversas opções de fármacos que podem ser usadas com segurança e eficácia em qualquer trimestre gestacional. Há grávidas que acreditam em muitos mitos; há uma série de informações falsas circulando na internet, como a de que, na gestação, não pode fazer radiografia ou a de que a anestesia pode fazer mal… Tudo isso vai na contramão da ciência e, como resultado, a gestante fica com medo de procurar o dentista porque acaba acreditando no que lê.
Qualquer gestante pode passar por um tratamento dentário, inclusive aqueles que requerem uso de medicamentos, como anestésicos?
Sim, qualquer gestante, as de alto risco inclusive, pode – e deve – ser tratada. Se ela já tiver alguma condição que torne a gestação mais vulnerável a complicações, como hipertensão ou diabetes, entre outras, é ainda mais importante que doenças periodontais sejam tratadas para evitar que os riscos aumentem. Existem medicamentos muito seguros, aprovados por órgãos como a Food and Drug Administration (FDA), que é a agência regulatória norte-americana. A FDA disponibiliza uma lista de medicamentos descritos e classificados por categoria de risco, possibilitando o uso na gravidez. O dentista pode consultar e observar quais drogas podem ser usadas com segurança em cada trimestre, para diversos procedimentos odontológicos.
Quais são os tipos de anestésico que podem ser utilizados com segurança em grávidas?
Existem anestésicos extremamente seguros para uso em gestantes. Inclusive, os anestésicos locais usados no período gestacional são os mesmos usados em qualquer outro paciente. Basicamente, o anestésico é composto de um sal, que pode ser usado com um vasoconstritor ou não. No Brasil, temos cinco principais tipos de sal anestésico: lidocaína, prilocaína, mepivacaína, articaína e bupivacaína. O mais seguro para qualquer trimestre gestacional, de acordo com classificação da FDA, é o sal lidocaína. É a primeira escolha sempre. Outros tipos só são utilizados se, por algum motivo, houver alguma condição associada que não permita o uso da medicação na paciente, o que não é comum.
Por que usar vasoconstritores?
Todo sal anestésico é vasodilatador, então é preciso associá-lo a um vasoconstritor para impedir que seja absorvido rapidamente pela circulação, o que encurtaria a duração de seu efeito, ou seja, não haveria tempo suficiente para o cirurgião-dentista trabalhar. Para isso, seriam necessárias quantidades muito altas. Como a absorção do sal anestésico pelo organismo é rápida, a toxicidade aumentaria. Ao associar um vasoconstritor ao sal, é possível prolongar o efeito da anestesia local sem que sejam necessárias grandes quantidades. Temos basicamente dois tipos de vasoconstritor: os adrenérgicos e os derivados da vasopressina. Os derivados da vasopressina não são a primeira escolha para gestantes, por terem semelhança estrutural com a ocitocina, o hormônio que ajuda a desencadear as contrações uterinas. Em geral, usa-se o vasoconstritor adrenérgico, ligado ao sal lidocaína.
Como os anestésicos agem em gestantes? Anestésicos locais têm interação com o feto?
Todo sal anestésico, quando administrado na gestante, chega ao compartimento fetal, o que, por si só, não é um problema. O importante é que, ao chegar ao feto ou ao embrião, a substância não cause nenhum tipo de prejuízo. A placenta é como uma peneira, mas nenhum sal anestésico usado na Odontologia é barrado por ela. O sal lidocaína, classificado como padrão ouro, é muito bem metabolizado pelo fígado do feto e, por isso, costuma ser a primeira escolha. Outros sais disponíveis são a bupivacaína, a prilocaína e a mepivacaína, que estão na categoria C, de acordo com a classificação da FDA. Isso significa que podem ser indicados quando os benefícios da utilização superam os riscos, o que deve ser avaliado caso a caso pelo cirurgião-dentista.
Qual é a importância de se atentar à dose do anestésico usada em pacientes grávidas?
Há uma restrição em relação à quantidade anestésica utilizada por sessão em gestantes. Normalmente, o cálculo da dose é feito com a quantidade de sal anestésico em relação ao peso do paciente. Na gestante, não. O máximo recomendado, nesse caso, são dois tubetes, justamente para que se possa usar um valor de vasoconstritor seguro nesta condição.
O que acontece quando a grávida tem alguma outra condição de saúde, como alergia, que impede o uso da lidocaína, por exemplo?
Caso a gestante tenha alguma patologia associada, que implique a necessidade de mudar o sal ou o vasoconstritor, existem outras possibilidades. É importante que o dentista estabeleça um contato saudável com o médico, embora ele não precise pedir autorização para atender a gestante nem pedir ao médico que escolha o vasoconstritor e o sal anestésico. É o dentista quem deve conhecer as indicações de anestésicos locais de uso odontológico. Além da lidocaína, um medicamento que vem se mostrando muito seguro é o sal articaína, que já apresenta resultados favoráveis em pesquisas, mostrando que talvez ele também se torne um anestésico local de eleição para o período gestacional. Além da escolha do medicamento, as técnicas dos dentistas são importantes no atendimento a grávidas.
Por quê?
Existem muitas intercorrências nos consultórios relacionadas à técnica, não só com gestantes, mas com pacientes em geral. A anestesia não deve ser injetada intravascular, mas precisa ser próxima, para que a difusão aconteça e o efeito comece. A boca é uma região muito vascularizada. Toda vez que o dentista injeta algo, é preciso fazer uma aspiração antes, para que a substância não vá para dentro do vaso. Várias complicações são consequência de injeção intravascular de anestesia local. Outro evento adverso observado com certa frequência no atendimento a gestantes é o que chamamos de síndrome da veia cava.
O que é isso e por que acontece?
Em fases mais avançadas da gravidez, quando o bebê já está maior, o peso dele pode comprimir a veia cava, um vaso sanguíneo localizado do lado direito, responsável por levar o sangue dos membros inferiores para os superiores, enquanto a artéria aorta faz o trajeto contrário. Dependendo da maneira como a mãe se deita na cadeira durante o atendimento, essa veia fica comprimida e o retorno venoso não ocorre adequadamente, o que pode causar uma síncope. Para evitar que isso ocorra, o profissional deve colocar uma pequena almofada nas costas da paciente, do lado direito, de forma que a barriga pese para o lado esquerdo, mantendo a veia cava desobstruída.
Qual é o papel do cirurgião-dentista ao lidar com o receio das pacientes gestantes em relação à segurança do tratamento?
Ao receber uma gestante no pré-natal, cabe ao dentista fazer toda a orientação e explicar com calma como devem ser os cuidados com a boca, as principais alterações e quais tratamentos serão necessários, além de como serão feitos. O objetivo é deixá-la tranquila, reforçando a importância e a segurança dos procedimentos. É fundamental esclarecer que o verdadeiro risco está justamente em não cuidar da saúde bucal e deixar de se tratar. Quando o dentista tem conhecimento, ele consegue escolher medicamentos seguros para a gestante e conduzir o tratamentode maneira eficaz, reduzindo o risco de complicações obstétricas.
Os tratamentos odontológicos e o uso de anestésicos podem ser feitos em qualquer fase da gestação?
As medicações são seguras, assim como o tratamento odontológico. É claro que é preciso ter um conhecimento da fisiologia gestacional para atender a gestante com segurança e fazer a interação com o médico da paciente nos casos necessários, mas isso pode, sim, ser feito — e em qualquer trimestre gestacional.