Assinatura salivar

Em voga por conta do uso em testes para detectar a Covid-19, ela é base de pesquisas com saliva para flagrar de infecções e cáries a câncer

Em março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia de Covid-19, já existiam duas clarezas. A primeira delas era a de que seria preciso criar maneiras de testar um número antes inimaginável de pessoas ao redor do mundo para saber quem estaria infectado pelo Sars-CoV-2 ou, ainda, quem já teria anticorpos contra o coronavírus.

A segunda certeza era a de que os exames mais tradicionais, como os sorológicos feitos a partir de amostras de sangue, não dariam conta do recado sozinhos. Afinal, eles exigem gente mais treinada para a coleta, maiores cuidados no transporte até o laboratório, um tempo às vezes longo demais para o resultado, considerando-se a urgência da situação, e, de quebra, enfrentam a resistência das pessoas por serem invasivos. Nesse cenário, cientistas se voltaram para um fluido historicamente esquecido e que poderia resolver alguns desses pontos: a saliva.

“Ela carrega substâncias que são marcadores, isto é, que podem entregar nosso estado de saúde, como proteínas, lipídeos, açúcares, enfim, moléculas que são produtos do nosso metabolismo. Ou até mesmo rastros de agentes infecciosos”, explica Paulo Henrique Braz-Silva, que é, no país, um dos principais pesquisadores em saliva, alvo de seus estudos há mais de duas décadas.

Professor da disciplina de Patologia do Departamento de Estomatologia da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo e pesquisador do Laboratório de Virologia do Instituto de Medicina Tropical na mesma instituição, ele conta que toda doença, infecciosa ou não, deixa uma assinatura em nossos fluidos corporais. “A questão é escolher qual seria o melhor deles para dar a resposta à pergunta que temos na cabeça naquele momento ou em determinada circunstância”, diz ele. “E, sim, a saliva se mostra uma ótima opção em algumas ocasiões”.

“Um dos aspectos mais fascinantes nos estudos focando a assinatura salivar é evidenciar que a boca não está descolada do restante do corpo”

A redescoberta do fluido salivar

 

A ideia de usar a saliva para entender a relação entre saúde e doença não é nova. Vem da escola humoral que predominou entre o século IV a.C e o século XVII, servindo de base para a medicina ocidental. Segundo ela, um desequilíbrio entre os líquidos do nosso corpo, ou humores, estaria por trás do adoecimento.

Claro, hoje ninguém acredita que nossas emoções decorrem desses líquidos. A Medicina baseada em fluidos, aliás, ficou para trás no Renascimento. No entanto, de lá para cá, as pessoas continuaram examinando a urina, as fezes e, principalmente, o sangue. Mas a saliva foi deixada de lado nos check-ups, por exemplo. Em parte porque se acreditava que ela só traria informações sobre o que acontecia com a própria boca. Ledo engano.

Hoje, há pesquisas com saliva para flagrar de infecções a doenças do metabolismo e câncer. Mais do que diagnosticar, os cientistas buscam descobrir o prognóstico de muitos desses males por meio da assinatura salivar, bem como querem monitorar o efeito dos tratamentos.

“Um dos aspectos fascinantes nos estudos focando a assinatura salivar é evidenciar que a boca não está descolada do restante do corpo”, opina a dentista Paula Midori Castelo, professora associada do Departamento de Ciências Farmacêuticas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde também coordena o comitê de ética e pesquisa. Ela clinicou por muitos anos, até decidir largar de vez o consultório para se dedicar exclusivamente à investigação dos marcadores salivares ligados à obesidade e aos padrões alimentares.

Avanços na covid-19

 

“Não há nada de bom em uma pandemia. Mas, se eu tivesse de forçar um aspecto positivo, seria o fato de a saliva ter se mostrado de vez como uma forma de a gente fazer o diagnóstico de infecções com maior facilidade”, opina o professor Braz-Silva.

“No caso da Covid-19, o RT-PCR feito por meio de um swab introduzido no nariz continua sendo o exame padrão-ouro”, esclarece o professor. “Mas existem situações em que a alternativa de você usar a saliva se torna bastante interessante. O primeiríssimo ponto a se considerar é o fato de enfrentarmos uma pandemia. Ora, muitas vezes, o próprio indivíduo pode colher a sua saliva. Isso, de cara, tira um pouco da sobrecarga nos serviços de saúde”.

Outro aspecto importante: não é sempre que a pessoa com suspeita de Covid-19 está próxima de um hospital. É quase certo que, em regiões afastadas de grandes centros, fica difícil contar com um laboratório capacitado a analisar o material coletado para encontrar as pegadas genéticas do Sars-CoV-2 ou os anticorpos deflagrados por ele. “Aí, portanto, está outra vantagem: no transporte, a saliva é o fluido mais estável, menos sensível a variações de temperatura, por exemplo”, informa o professor. Isso também será um ponto positivo considerável quando surgirem mais testes salivares, diagnosticando outras infeccções.

A questão conforto

 

Sem dúvida, porém, a grande vitrine do teste de saliva é diminuir o desconforto. Seja o de uma picada ou o de um longo swab forçando sua chegada até a nasofaringe.

“Há menos resistência à ideia de se submeter ao exame e, com isso, se torna mais viável fazer a tão necessária vigilância epidemiológica, monitorando a população”, diz Braz-Silva, que, recentemente, publicou um trabalho, fruto de uma parceria com a Prefeitura de São Caetano do Sul (SP), em que os resultados da autocoleta da saliva foram comparados com o de secreções do nariz. O exame de saliva, então, se mostrou extremamente confiável para acompanhar quem tinha se contaminado na cidade.

Para o público infantil, por razões óbvias, a saliva também se revela uma boa escolha. O professor Braz-Silva está prestes a publicar um trabalho com crianças de Araraquara (SP). De acordo com o artigo, nelas, o teste salivar teve a mesma eficiência que o RT-PCR para detectar o Sars-CoV-2. “Os casos discordantes tiveram pouca significância”, adianta.

Apontar o prognóstico

 

Mas a saliva não esconde apenas o material genético do inimigo ou os anticorpos capazes de entregar quem já teve contato com ele no passado. A composição de biomarcadores pode ser diferente conforme a gravidade de uma infecção ou outra doença.

“Podemos buscar lipídeos, carboidratos e outros produtos do metabolismo que se alteram na assinatura salivar como se fossem marcas dos estragos provocados por uma enfermidade”, conta Braz-Silva, que conduz um trabalho com a saliva de 300 pacientes com Covid-19 que passaram pelo Hospital Emílio Ribas.

A ideia é comparar a assinatura salivar daqueles com quadros assintomáticos e leves, tratados em casa, com a dos doentes com sintomas moderados que precisaram permanecer no quarto do hospital e, ainda, com a dos indivíduos internados em estado grave na UTI. Será que a assinatura salivar seria capaz de apontar quem são aqueles que chegam com a situação aparentemente sob controle, mas que vão acabar precisando de um ventilador mecânico? A aposta é que sim.

No monitoramento do câncer

 

Professora de Biologia Oral da Faculdade de Odontologia da USP, Alyne Simões acredita que a oncologia é outra área em que a assinatura salivar ganhará cada vez mais espaço. “Inclusive para monitorar o sucesso do tratamento”, opina.

Segundo ela, no início foram mais estudados biomarcadores de cânceres de cabeça e pescoço. “Hoje, porém, os trabalhos mostram que há marcadores confiáveis para tumores em outras áreas do corpo”, nota.

A mais recente revisão sistemática nesse campo, publicada em 2020, foi realizada por cientistas da Universidade de Brasília, do Cettro (Centro de Câncer de Brasília), da unidade do Hospital Sírio-Libanês no Distrito Federal, e da Universidade de Paris, na França. O grupo debruçou-se sobre nada menos do que 1.151 estudos sobre assinatura salivar e câncer.

No final, os pesquisadores selecionaram 25 deles, a maioria sobre tumores de boca e de mama. Foram identificados 140 metabólitos na saliva que seriam marcadores de câncer. Assim, surge a possibilidade de testes de diagnóstico rápidos, os quais — especialmente nos tumores mamários — poderiam ser usados para o controle de mulheres que foram tratadas, denunciando casos de recidiva sem a necessidade de tantos exames de imagem.

Já na Faculdade de Odontologia da Bauru (USP), o professor Paulo Sérgio da Silva Santos, do Departamento de Cirurgia Estomatológica, Patologia e Radiologia, realiza com seus colegas um estudo diferente: eles querem avaliar o que acontece com a microbiota da boca de crianças com leucemia. Para isso, colheram a saliva diretamente dos ductos das glândulas, logo após o diagnóstico. “Queremos acompanhar essas meninas e meninos para entender o impacto do tratamento oncológico”, ele conta. “As alterações nos microrganismos que habitam a cavidade oral poderão determinar uma maior vulnerabilidade para problemas como a cárie”.

A marca do estresse

 

“Um dos desafios para se usar mais a assinatura salivar na prática clínica é contar com estudos que diferenciem as alterações que indicam algum problema sistêmico daquelas que podem estar simplesmente refletindo algum problema na própria boca, como a periondontite”, observa a professora Alyne.

O cortisol encontrado na saliva serve de exemplo de algo que já está bem estabelecido, de acordo com ela. “Podemos confiar na dosagem feita por meio da saliva para indicar o nível de estresse de um paciente, porque ela não sofre interferência do que está  acontecendo na cavidade oral”, informa. O exame, no caso, vem sendo usado na avaliação de transtornos de ansiedade e até mesmo em crianças com bruxismo.

“As alterações nos microrganismos
que habitam a cavidade oral poderão determinar uma maior vulnerabilidade para problemas como a cárie depois”

Saliva e obesidade

 

Já na Unifesp, a professora Paula Midori Castelo interessou-se pela saliva como matriz biológica para investigar a obesidade. Doença inflamatória por natureza, ela provoca uma série de alterações metabólicas no organismo, muito além do que se vê na balança. Entre elas, a produção exagerada de moléculas de purinas, que, por sua vez, elevam as concentrações do ácido úrico.         

“O ácido úrico na saliva é um excelente marcador para você analisar o acúmulo de gordura corporal”, garante a pesquisadora. “Demonstramos que o seu aumento nesse fluido refletia o que encontrávamos no plasma sanguíneo”, diz ela, referindo-se a um estudo com 248 adolescentes, sem cárie nem doença periondontal, justamente para evitar qualquer fator de confusão.

Apesar da óbvia facilidade de coleta, vale se perguntar por que estudar a saliva, se existem outras maneiras não invasivas de avaliar o grau de obesidade. “Uma coisa não substituiu a outra”, explica. “O exame da saliva serve como um complemento, porque, mais do que ser um preditivo de acúmulo de gordura corporal, ele dá uma noção do nível de inflamação do organismo por causa do excesso de peso. Nessa linha, talvez a saliva possa apontar o risco cardiovascular futuro de um jovem com obesidade agora”.

Em outro trabalho envolvendo 113 portadores de obesidade mórbida, a professora e seus colegas notaram que a assinatura salivar acusaria uma série de problemas nutricionais provocados por hábitos menos saudáveis à mesa. “Ela poderá se tornar um instrumento importante para ajustar a dieta de pacientes candidatos à cirurgia bariátrica”, prevê.

Percepção de sabor

 

Em 2019, Paula Castelo resolveu fazer um estágio em Portugal, na Universidade de Évora. Pois ali é o QG de Elsa Lamy, professora de Fisiologia do Comportamento Alimentar que realiza uma série de pesquisas com saliva para entender nossas preferências à mesa. Pois a percepção e a escolha dos alimentos têm muito a ver com a composição desse fluido.

E há o caminho inverso: em um trabalho que a dentista realizou com os pesquisadores portugueses, demonstrou-se que o simples cheiro do pão não só é capaz de deixar a boca aguando, aumentando a produção salivar, como consegue alterar a concentração de proteínas em sua composição. Agora, eles devem fazer novas pesquisas para elucidar a razão dessas mudanças.

“Pensando em saúde, são trabalhos que podem ajudar na criação de alimentos capazes de despertar o paladar das pessoas na terceira idade, que costumam perceber menos os sabores, o que muitas vezes implica em problemas na hora de se alimentar”, conta a pesquisadora.

O problema da polifarmácia

 

Os estudiosos que fazem o importante elo entre a saliva e o paladar também querem compreender o impacto do uso de certos medicamentos, não só na quantidade, mas na qualidade do fluido salivar. Isso é algo que tem sido observado, por exemplo, em crianças com asma que usam corticoides. A medicação não apenas deixa a boca dos pequenos mais seca, mas — como já foi provado — culmina em disgeusia, isto é, em alterações na percepção de sabores.

Vários medicamentos atrapalham a produção da saliva, como lembra o estomatologista Luiz Alcino Gueiros. “Além dos corticoides, alguns são clássicos, como os antidepressivos, os anti-histamínicos e os ansiolíticos”, diz ele. “Mas o fato é que não importa o tipo de remédio quando você toma vários deles no dia a dia. Aí, a produção da saliva sempre será afetada.”

Fontes: Inbenta e Globalbot
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