OBE

Atualizações sobre o gerenciamento da cárie

O que você deve saber sobre as atuais recomendações de como gerenciar a cárie

Emerson Nakao
Rodolfo Francisco Haltenhoff Melani

O avanço da tecnologia proporcionou uma incrível facilidade de acesso a todo tipo de informação e de forma muito rápida, mas também nos trouxe a um ponto onde nos encontramos: no limite da capacidade humana de absorção e compreensão desses dados, que nem sempre são confiáveis. A situação não é diferente para os cirurgiões-dentistas: a literatura apresenta uma quantidade imensa e crescente de estudos de tipos diferentes e com objetivos específicos que são muito difíceis de acompanhar até para quem pertence ao meio acadêmico. Nesse cenário, evidências científicas avaliadas e sintetizadas criticamente, conhecidas como diretrizes, tornaram-se fundamentais para a prática clínica.

Podemos entender que diretrizes de prática clínica são declarações sistematicamente desenvolvidas para auxiliar as decisões do profissional e do paciente sobre cuidados de saúde apropriados para circunstâncias clínicas específicas. Elas são importantes porque fornecem recomendações para os cirurgiões-dentistas com base nas melhores evidências. São cuidadosamente elaboradas para aumentar a eficácia da intervenção do cirurgião-dentista e para promover a segurança dos pacientes, em situações como após o uso de algum medicamento ou a realização de um procedimento clínico, ao mesmo tempo que evitam desfechos indesejados, como o próprio insucesso em resolver o problema ou mesmo o surgimento de novos problemas não relacionados à causa inicial. Em outras palavras, não seguir diretrizes já estabelecidas diminui drasticamente as chances de sucesso, colocando em risco o paciente.

Diretrizes são especialmente úteis na abordagem de problemas complexos sobre os quais ainda não há estudos suficientes para esclarecer sua origem, sua evolução e seus desfechos, e que, por isso, geralmente, apresentam mais de uma forma de abordagem clínica descrita ou não na literatura. Diante da dúvida sobre qual conduta seguir, não é incomum identificar basicamente dois comportamentos ligados ao profissional: a adoção de uma das condutas para todos os casos; ou usar aleatoriamente as recomendações.

Um estudo publicado na revista Journal of American Dental Association (JADA), em 20231 , pondera que diretrizes de prática clínica geralmente não são seguidas porque o profissional desconhece a existência de uma recomendação de prática clínica a respeito de determinado assunto, por sua incapacidade de entender as recomendações (a falta de um treinamento para interpretar adequadamente a recomendação sob a luz de um contexto fundamentado, o que leva o profissional a ignorá-la deliberadamente, mesmo sabendo da sua existência), ou por problemas relacionados à sua implementação, entre outras barreiras.

LESÕES DE CÁRIE

A doença cárie é um tema complexo. Envolve a interação de fatores causais e modificadores, sendo um deles o comportamental, de difícil gerenciamento. Envolve também a doença periodontal, pois o agente etiológico, a placa bacteriana que se acumula por falta de higienização adequada, é comum às duas condições. O diagnóstico completo da doença é outro importante elemento nessa equação, pois as formas de tratamento variam de acordo com a classificação de gravidade da lesão, como discutido anteriormente nesta seção, na edição 32, quando foi publicada a matéria sobre o ICDAS (Sistema Internacional de Detecção e Avaliação de Cárie). Se não for feita uma avaliação precisa da gravidade da lesão de cárie, é bem provável que a abordagem escolhida para o tratamento da doença não seja a mais apropriada, ou, melhor dizendo, não seja corretamente dimensionada.

Se por um lado há profissionais que desconhecem abordagens mais conservadoras ou preferem não aderir a elas, do outro há o paciente, que pode expressar a sua vontade em não ter o tecido cariado de seus dentes removido de forma seletiva, como conclui um estudo2 realizado em 2016, no qual vamos nos aprofundar no decorrer deste OBE.

Já se afirmava há quase 10 anos que, apesar das evidências crescentes em favor da remoção seletiva de tecido cariado, a técnica não é adotada pela maioria dos dentistas, e uma possível razão é que os pacientes a rejeitam. Realizado na Alemanha com 150 participantes, o estudo constatou que 82,7% deles preferiram não se submeter a uma remoção seletiva de tecido cariado, mesmo cientes dos riscos associados à remoção completa do tecido cariado, como sensibilidade pós-operatória, possível tratamento endodôntico e necessidade de restaurações complexas (diretas extensas ou indiretas envolvendo pinos intrarradiculares), e cientes de que isso, consequentemente, comprometeria a estrutura do dente, impactando tanto sua resistência mecânica quanto sua longevidade. Ou seja, eles preferiram aceitar os riscos, assumindo o ônus relacionado ao tempo e ao custo do tratamento.

Outro dado interessante extraído das conclusões desse estudo é que a preferência pela remoção seletiva aumentou significativamente em pacientes com personalidade emocionalmente estável (p<0,001), diploma de admissão na universidade (p<0,001), nenhuma ou pouca ansiedade odontológica (p=0,044), poucas mudanças de dentista no passado (p=0,025) e que aceitaram que lesões seladas poderiam progredir (p<0,002)

É claro que esses resultados não podem ser generalizados, mas eles ajudam a entender melhor a questão. Eles indicam que não seguir uma abordagem mais conservadora, embora seja respaldado pela ciência, é um problema mais complexo do que simplesmente remover todo o tecido cariado ou somente parte dele, e que pode levar tempo até a técnica ser compreendida e aceita, tanto pelos cirurgiões-dentistas como pelos pacientes – assim como ocorreu com a exodontia profilática dos terceiros molares, assunto também abordado nesta seção nas edições 8, 9 e 10, de 2015, da Conexão Odontoprev, ou como ocorreu na Medicina, com a remoção profilática das tonsilas palatinas (amígdalas).

Segundo a Organização Mundial da Saúde, a cárie é a doença crônica não transmissível mais prevalente no mundo, atingindo cerca de 2,5 bilhões de pessoas.3 Esse dado dá uma dimensão da relevância do papel do cirurgião-dentista na sociedade, uma vez que ele é o único profissional habilitado a tratá-la e gerenciá-la.

Nesse contexto, em importante relatório publicado em julho de 20234 e intitulado “Evidence-based clinical practice guideline on restorative treatments for caries lesions” (em tradução livre: “Diretrizes baseadas em evidências da prática clínica do tratamento restaurador de lesões de cárie”), a American Dental Association (ADA) trouxe uma atualização sobre as diretrizes de conduta a respeito do tratamento restaurador direto para lesões de cárie moderadas e severas, em dentes decíduos e permanentes, além de recomendações sobre o tipo de material restaurador direto que deve ser utilizado, específico para a localização de dente e superfícies envolvidas.

O Conselho de Assuntos Científicos da ADA, com o seu programa de Pesquisa Clínica e Translacional do Instituto de Ciência e Pesquisa, convocou um painel de cirurgiões-dentistas (entre eles clínicos gerais e odontopediatras) e profissionais com formação em saúde pública especializados em cariologia, dentística operatória e materiais dentários. Por meio de uma análise de uma série de revisões sistemáticas e de ensaios clínicos (baseada em critérios e metodologias preestabelecidos), eles avaliaram a certeza das evidências e formularam 16 recomendações e declarações de boas práticas, quatro delas sobre abordagens RTC específicas para a profundidade da lesão e doze sobre materiais restauradores diretos.

O painel de especialistas utilizou as seguintes definições de abordagens de remoção de tecido cariado e apresentação clínica de lesão de cárie,4 cujo conhecimento é necessário para interpretar os resultados a que chegaram:

  • A abordagem de remoção de cárie é definida pela extensão do tecido cariado removido.
  • A remoção não seletiva (total) de tecido cariado é definida como a remoção de tecido cariado até que a dentina dura seja atingida, o que também é conhecido como remoção completa da cárie.
  • A remoção seletiva de tecido cariado é definida como a remoção de tecido cariado até atingir a dentina mole ou firme, o que também é conhecido como remoção parcial ou incompleta da cárie.
  • A remoção gradual do tecido cariado é definida como a remoção do tecido cariado primeiro até que a dentina mole seja alcançada, seguida pela colocação de uma restauração temporária. Meses depois, a restauração e o tecido cariado são removidos até que a dentina firme seja alcançada, sendo então colocada uma restauração permanente. Isso também é conhecido como remoção de cárie em 2 etapas (stepwise).
  • A técnica de não remover tecido cariado é definida como o selamento de uma lesão de cárie com uma coroa pré-fabricada. Os CDs podem não realizar a remoção de tecido cariado para lesões nas quais uma coroa pré-fabricada é indicada.

A correlação entre o código e a situação clínica das lesões de cárie (ICDAS) adotada pelos especialistas foi:

  • A lesão de cárie moderada é classificada com os códigos 3 e 4 do Sistema Internacional de Detecção e Avaliação de Cárie (ICDAS).
  • A lesão de cárie avançada é classificada com os códigos 5 e 6 do Sistema Internacional de Detecção e Avaliação de Cárie (ICDAS).

ABORDAGENS DE REMOÇÃO DE TECIDO CARIADO

O painel de especialistas partiu de casos clínicos específicos para recomendar a priorização de abordagens de remoção de tecido cariado. Eles levaram em conta nas recomendações, entre outros fatores: priorização do problema, magnitude dos efeitos desejáveis, magnitude dos efeitos indesejáveis, certeza da evidência, equilíbrio entre efeitos desejáveis e indesejáveis, valores e preferências dos pacientes, recursos necessários, aceitabilidade e viabilidade.

DENTES DECÍDUOS

Para tratar dentes decíduos vitais que requerem uma restauração (independentemente do material restaurador direto e dos meios para remover tecido cariado, e sem terapia pulpar), o painel de diretrizes sugere, no caso de lesões moderadas de cárie, o uso de remoção seletiva de tecido cariado; remoção não seletiva de tecido cariado; ou nenhuma remoção de tecido cariado (ou seja, selamento da lesão de cárie com uma coroa pré-fabricada). Já para lesões avançadas, em vez de remoção não seletiva de tecido cariado ou remoção gradual, sugere-se priorizar o uso de remoção seletiva de tecido cariado ou nenhuma remoção de tecido cariado. O painel salienta que essas recomendações são condicionadas e apresentam uma certeza muito baixa na análise efetuada.

DENTES PERMANENTES

Os especialistas também sugeriram abordagens em casos de dentes permanentes vitais que requerem uma restauração (independentemente do material restaurador direto e dos meios para remover tecido cariado, e sem terapia pulpar). Para tratar lesões moderadas de cárie, sugere-se priorizar o uso de remoção seletiva de tecido cariado em vez de remoção não seletiva. Já nas lesões avançadas, a orientação é priorizar o uso de remoção seletiva de tecido cariado sobre remoção gradual de tecido cariado ou remoção não seletiva de tecido cariado. Como ocorreu nos casos de dentes decíduos vitais citados no parágrafo anterior, as recomendações são condicionadas e apresentaram uma certeza muito baixa de acordo com a análise feita pelos especialistas.

Os autores ressaltam que os cirurgiões-dentistas devem considerar os critérios de avaliação da lesão de cárie (classificação da lesão e forma de remoção do tecido cariado), além de levar em conta o número de superfícies envolvidas, o risco e a atividade de cárie, o controle de umidade, o comportamento e as preferências do paciente, os custos do tratamento e o tempo previsto para a esfoliação ao decidir se devem colocar uma coroa pré-fabricada.4

De um modo geral, eles chegaram à recomendação de que se deve priorizar a remoção dos tecidos cariados mais conservadora para tratar lesões avançadas de cárie em dentes decíduos e permanentes em relação à RTC não conservadora.

MATERIAIS RESTAURADORES

Na mesma pesquisa, o painel de especialistas da ADA analisou os materiais restauradores diretos e estabeleceu um guideline com recomendações clínicas e declarações de boas práticas para os materiais em dentes decíduos e permanentes para lesões de cárie em dentes vitais, não endodonticamente tratados, levando também em conta sua localização (anteriores e posteriores), a profundidade da lesão e o risco de cárie. Você pode acessar as tabelas finais de recomendações para cada caso específico no artigo original por meio do QR Code acima.

CONCLUSÃO: EM CONSTANTE EVOLUÇÃO

Como dito anteriormente, diretrizes são especialmente úteis na abordagem de problemas complexos e que envolvem paradigmas que devem ser revistos constantemente. O guideline realizado pela ADA é uma prova disso. Nos últimos 20 anos, a vertente que prioriza preservar a estrutura dentária saudável mudou a forma como os cirurgiões-dentistas devem tratar lesões avançadas.

Embora os especialistas que elaboraram o guideline reconheçam que as decisões sobre as abordagens de remoção de tecido cariado podem ser baseadas na educação clínica precoce, nos comportamentos aprendidos e nas preferências, eles sugerem colocar uma ênfase maior na evidência de aumento do risco de resultados como exposição pulpar quando todo o tecido cariado é removido. Tanto é assim que recomendam aos cirurgiões-dentistas usar abordagens mais conservadoras alinhadas aos dois objetivos principais da Odontologia restauradora: preservar a estrutura dentária saudável e proteger o complexo polpa-dentina.

Vale ressaltar que os baixos níveis de certeza encontrados nas recomendações da ADA significam que estudos que atendam aos critérios de elegibilidade do painel de especialistas não foram encontrados na literatura. Porém, isso não invalida uma recomendação, pois a ausência da evidência não significa que ela não existe.

Estudos que atendam a esses critérios, como a metodologia da pesquisa (padronização da amostra e processos, número significativo e método estatístico, por exemplo), são muito difíceis de realizar também por seu alto custo financeiro. Por isso, não representam a maioria dos estudos disponíveis. Na ausência desses, a ciência se baseia em outras categorias de estudos, desde que bem desenhados e executados, para tirar suas conclusões. Uma recomendação não é uma regra rígida, simplesmente porque não existem evidências suficientes disponíveis. É uma indicação, uma sugestão, uma orientação de melhor prática baseada no que a ciência fundamentada disponibiliza naquele momento. E nunca será algo rígido e imutável, pois está em constante evolução.

REFERÊNCIAS

1. Abt E, Weyant RJ, Frantsve-Hawley J, Carrasco-Labra A. The potential harm of not following clinical practice guideline recommendations. J Am Dent Assoc. 2023;154(8):760-5. doi: 10.1016/j.adaj.2023.05.002. Epub 2023 Jun 27. PMID: 37367711.

2. Schwendicke F, Mostajaboldave R, Otto I, Dörfer CE, Burkert S. Patients’ preferences for selective versus complete excavation: A mixed-methods study. J Dent. 2016 Mar;46:47-53. doi: 10.1016/j.jdent.2016.01.006. Epub 2016 Jan 18. PMID: 26796700.

3. World Health Organization (WHO). Açúcares e cáries dentárias [Internet]. Genebra: World Health Organization(WHO); 2021 [Acesso em 15 out. 2024]. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/de – tail/sugars-and-dental-caries.

4. Dhar V, Pilcher L, Fontana M, Urquhart O et al. Evidence-based clinical practice guideline on restorative treatments for caries lesions. JADA. 2023;154(7):551-566.e5.

Prof. Emerson Nakao

Mestre e Especialista em Prótese Dentária e professor da FFO-Fundecto, fundação conveniada à Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP)

Prof. Dr. Rodolfo Francisco Haltenhoff Melani

Professor titular do Departamento de Odontologia Social e responsável pela área de Odontologia Legal do Programa de Pós-Graduação em Ciências Odontológicas, ambos na FOUSP

Scroll to Top