CANNABIS

NA ODONTOLOGIA

Quais as aplicações, os riscos e a eficiência dos medicamentos fitocanabinoides e o que dizem as pesquisas relacionadas ao tema

A Cannabis sativa está na boca dos brasileiros. E não estamos falando de seu uso recreativo (ilegal) na forma de cigarro e comestíveis, mas da sua presença como assunto nas conversas entre leigos e debates entre especialistas, ou seja, da intensa circulação de informações sobre as propriedades terapêuticas dos compostos da planta da Cannabis. As possibilidades de seu uso medicinal estão em manchetes, em ações na Justiça e em discussões no Congresso Nacional. Estima-se que já existam no Brasil mais de 150 associações dedicadas a facilitar o acesso dos pacientes à cannabis medicinal, que começou a ser disponibilizada no país em 2014, por meio de uma decisão judicial, e, no ano seguinte, de uma autorização de importação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

No ano passado, os formulários para importar produtos à base de canabinoides ganharam um campo para o preenchimento do número do CRO, reduzindo a burocracia para que os cirurgiões-dentistas também possam prescrever os produtos. Mas seria a cannabis medicinal uma panaceia para a saúde bucal?

“É importante não colocar a paixão na frente da razão”, diz o cirurgião-dentista João Paulo Tanganeli, que preside o grupo de trabalho sobre medicamentos fitocanabinoides do CRO de São Paulo, criado para avaliar o embasamento científico da cannabis na Odontologia e assessorar a Anvisa a esse respeito. Há uma explosão de pesquisas sobre as propriedades medicinais dos canabinoides, como na terapêutica para esclerose múltipla e para casos graves de epilepsia, e, em menor proporção, também para aplicações na Odontologia. “O que existe ainda não permite colocar medicamentos fitocanabinoides como a primeira escolha em tratamentos odontológicos, mas os resultados até agora demonstram que eles já são alternativas viáveis em diversas aplicações”, diz Tanganeli.

A CANNABIS NO CORPO 

O cânhamo, como a planta Cannabis sativa também é conhecida, possui mais de uma centena de substâncias canabinoides, das quais as mais estudadas são o THC (tetrahidrocanabinol), o CBD (canabidiol) e o CBG (canabigerol), além de flavonoides e terpenos. O THC, além do seu potencial terapêutico, é o responsável pelo efeito psicotrópico, razão pela qual costuma aparecer em concentrações muito baixas nos medicamentos.

O organismo humano também produz, de forma natural, seus próprios canabinoides. São os endocanabinoides, que se conectam com receptores específicos descobertos pela ciência nas décadas de 1980 e 1990, o CB1R — que se concentra em regiões cerebrais, mas também aparece em tecidos periféricos (musculares e cardiovasculares), com funções variadas na regulação do metabolismo — e o CB2R, presente principalmente em células imunológicas. Esse é o chamado sistema endocanabinoide, que contribui para a modulação da homeostase do corpo humano.

É como se nosso organismo fosse dotado de minúsculas fechaduras (os receptores) e chaves (os endocanabinoides) que interagem para ativar e desativar múltiplas funções fisiológicas. Mas eis que a natureza, por meio da planta da cannabis, também dispõe de chavinhas (os fitocanabinoides) que se encaixam em nossos receptores, ativando e desativando essas mesmas funções.

Devido a esse caráter homeostático do sistema endocanabinoide, o uso terapêutico mais comum é o de fármacos full spectrum, ou seja, que contemplam todo o espectro de compostos existentes no cânhamo, mas com uma baixa concentração do psicotrópico THC (na maioria dos rótulos disponíveis nas farmácias brasileiras, o limite é de 0,2% dessa substância, pelo padrão da Anvisa), ministrados oralmente na forma de óleos. Mas existem também para importação tinturas (extrato da planta diluído em álcool), cremes dentais e enxaguantes, entre outros produtos.

USO NA ODONTOLOGIA

Entre as aplicações mais estudadas na Odontologia — e que têm resultado em relatos animadores de cirurgiões-dentistas que receitam canabinoides aos pacientes — está o controle de dores crônicas. Nos casos de bruxismo e de disfunção temporomandibular (DTM), por exemplo, os bons resultados terapêuticos desses compostos ocorrem tanto por suas propriedades ansiolíticas, atuando na causa do problema, quanto analgésicas. “Depois que se inicia o tratamento com o óleo de cannabis, é possível ter uma resposta contra a dor em duas ou três semanas”, explica Tanganeli. Uma das vantagens dessa terapia, que lhe permite auxiliar na mitigação das dores orofaciais, é que os fitocanabinoides melhoram a qualidade do sono, sem serem indutores do sono.

Por suas características analgésicas, os canabinoides têm sido usados em consultórios odontológicos nos Estados Unidos para reduzir a prescrição de opioides, que se tornaram um sério problema de saúde pública no país por causarem dependência. Estudos pré-clínicos revelaram que a dose de morfina e codeína, quando administrada em conjunto com um canabinoide sintético, pode ser reduzida significativamente, obtendo-se o mesmo efeito contra a dor. Estudos com fitocanabinoides (extraídos da planta) também demonstraram seu grande potencial para substituir ou reduzir a prescrição de opioides.

O CBD também está sendo testado para o controle da dor inflamatória aguda após intervenções cirúrgicas simples, como extração de dentes. A cirurgiã-dentista Endy Lacet, por exemplo, às vezes prescreve o óleo de cannabis nos dias anteriores ao procedimento, o que permite diminuir a dose do sedativo. Lacet é presidente da Sociedade Brasileira de Odontologia Canabinoide (Sbocan), entidade criada para atuar na divulgação de informações, na consultoria de empresas e na formação de profissionais para o uso odontológico dos canabinoides.

Os canabinoides têm sido testados, com resultados animadores, para o alívio de condições para as quais a alopatia ou outras terapêuticas ainda não se mostraram totalmente efetivas. Endy Lacet, por exemplo, tem obtido bons resultados com o óleo de cannabis para minimizar a dor de pacientes com neuralgia do trigêmeo, aplicação para a qual vêm sendo coletadas evidências em inúmeros estudos internacionais. João Paulo Tanganeli, por sua vez, destaca o potencial dos canabinoides no tratamento da síndrome de ardência bucal (SAB), uma sensação crônica de queimação dentro da boca que afeta principalmente mulheres na menopausa e costuma se iniciar por gatilhos emocionais. Em muitos países, os canabinoides são prescritos na forma de spray oral para combater essas e outras dores neuropáticas.

Os canabinoides também se mostram efetivos no controle do biofilme por suas propriedades bactericidas (eliminação de bactérias) e bacteriostáticas (inibição do crescimento bacteriano). Segundo revisão de estudos coordenada por pesquisadores da Universidade do Tennessee e da Arábia Saudita, ensaios laboratoriais com amostras de placas bacterianas mostraram que um enxaguante com CBD e CBG teve efeito equivalente ao gluconato de clorexidina 0,2% na inibição da cultura de bactérias.

Por sua capacidade de regular a microbiota oral, somada às suas propriedades antioxidantes, anti-inflamatórias e de cicatrização de tecidos moles, os fitocanabinoides podem ser fortes aliados no tratamento de doenças periodontais crônicas, seja na forma de pasta de dente, seja de enxaguante bucal. Com o óleo de cannabis, o tempo de cicatrização pode ser reduzido pela metade. Também estão sendo estudadas pomadas de cannabis para lesões intrabucais. Por atuar no reequilíbrio da homeostase, o que inclui o nível de acidez na boca, os canabinoides também têm se mostrado promissores no tratamento de afta e na remineralização do esmalte.

Uma revisão de estudos sobre a aplicação de canabinoides na Odontologia publicada na revista suíça Dentistry Journal, de autoria de pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas, ressalta três diferentes aplicações do CBD, entre as quais a regeneração óssea. Endy Lacet explica que também há evidências de que o CBG “estimula as células mesenquimais osteoblásticas, que fazem a deposição do tecido ósseo, e inibe a produção das células osteoclásticas, que fazem a reabsorção óssea”. Daí que os fitocanabinoides vêm sendo usados para acelerar o tempo de recuperação após enxertos ósseos para implantes dentários.

CONTRAINDICAÇÕES E PRESCRIÇÕES

Por sua atuação sistêmica, as terapias com fármacos fitocanabinoides precisam ser individualizadas. Cada paciente responde de uma maneira diferente à quantidade de medicamento ministrado. O recomendável é que se inicie com doses baixas, a serem elevadas paulatinamente até se atingir o efeito esperado — o chamado “alvo terapêutico”. Em dosagens elevadas, o resultado da ingestão dos canabinoides será o oposto do almejado; por exemplo, a dor pode voltar ou a microbiota periodontal pode aumentar.

Os tratamentos com fitocanabinoides têm um perfil de segurança alta, mas há contraindicações, como a de seu uso por gestantes e crianças com menos de 2 anos de idade, devido à falta de estudos com esses públicos, e por transplantados e pacientes hepáticos ou renais (para estes pode ser suficiente um monitoramento periódico dessas funções ou redução da dosagem).

Para o uso prolongado dos canabinoides, recomenda-se o controle frequente da pressão arterial, que pode ser alterada pelos compostos da cannabis. Também é preciso ficar atento a possíveis efeitos adversos decorrentes de interações com outros medicamentos, como os anticonvulsivantes, e à baixa efetividade em usuários frequentes de cigarro de maconha.

Os cirurgiões-dentistas devem alertar aos pacientes que são atletas profissionais sobre o risco de o THC dos fármacos canabinoides, mesmo em baixa concentração, ser identificado em testes antidoping.

Pela regulamentação atual no Brasil para uso de cannabis medicinal, há quatro caminhos para a prescrição desses fármacos por cirurgiões-dentistas. O primeiro, para produtos comercializados em farmácias, onde podem ser encontradas cerca de 25 opções, é necessário usar o receituário azul ou amarelo, exclusivo para psicotrópicos ou medicamentos que podem causar dependência.

OS RISCOS DA MACONHA PARA A SAÚDE BUCAL

Se, por um lado, as terapias com compostos canabinoides têm se mostrado promissoras para diversas aplicações na Odontologia, por outro, a maconha, em seu uso recreativo na forma de cigarro ou de comestíveis, possui efeitos nocivos para a saúde bucal — basicamente por causa da alta concentração do THC, responsável pelos efeitos psicotrópicos do produto.

A revisão de estudos feita por Abidi, Alghamdi e Derefinko (2022) destaca que usuários de maconha apresentam em média uma higiene oral pior e uma incidência maior de placa bacteriana nos dentes do que outros pacientes. Em 2021, um estudo coordenado pela imunologista Wei Jiang, da Universidade Médica da Carolina do Sul, identificou uma alta incidência da bactéria Actinomyces meyeri, associada à doença de Alzheimer e a outros males neurológicos, na boca de consumidores recorrentes de maconha.

Além disso, o uso do cigarro aumenta o risco de câncer de boca, hiperplasia gengival, uvulite, mau hálito e inflamação na gengiva. A larica, ou apetite exacerbado, por sua vez, aumenta a ingestão de açúcar e alimentos industrializados, com seus conhecidos efeitos nocivos para a saúde bucal.

Um levantamento feito no ano passado pela American Dental Association (ADA) revelou também que muitos pacientes nos Estados Unidos fumam maconha antes de consultas odontológicas com a esperança de enfrentar sua fobia dos tratamentos. Isso acaba atrapalhando o trabalho dos cirurgiões-dentistas, pois esses pacientes chegam ao consultório com a boca seca e com sintomas de ansiedade, paranoia ou hiperatividade — alguns dos efeitos do psicotrópico. Nada menos que 56% dos profissionais consultados disseram que nesses casos precisaram reagendar a consulta e 46% afirmaram que foi necessário aumentar a dose da sedação durante os procedimentos.

O segundo caminho é via importação, que pode ser solicitada com receituário branco. Nesse caso, o cirurgião-dentista indica ao paciente algumas opções de empresas importadoras, que fazem todo o procedimento junto à Anvisa, um processo que já foi mais demorado, mas que atualmente não leva mais do que 24 horas.

O terceiro caminho é procurar associações de cannabis que possuem autorização judicial para o cultivo da planta para fins medicinais e sua disponibilização aos sócios. Nesse caso, o paciente precisa de um laudo justificando a necessidade do tratamento, com indicação do código CID (Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde), e a prescrição pelo cirurgião-dentista pode ser feita com receituário branco.

O quarto caminho, evidentemente o mais difícil deles, mas eventualmente necessário para usuários contínuos da cannabis medicinal, é a obtenção, pelo paciente, de uma autorização judicial individual para poder plantar a cannabis e produzir o próprio óleo terapêutico.

As terapias canabinoides ainda não estão disponíveis na maioria dos consultórios do país, mas tudo indica que, com o rápido avanço nos estudos sobre sua aplicação na Odontologia, cada vez mais os fitocanabinoides estarão na boca dos brasileiros.

REFERÊNCIAS

Abidi, A. H., Alghamdi, S. S., & Derefinko, K. (2022). A critical review of cannabis in medicine and dentistry: A look back and the path forward. Clinical and experimental dental research, 8(3), 613–631.

David, C., Elizalde-Hernández, A., Barboza, A. S., Cardoso, G. C., Santos, M. B. F., & Moraes, R. R. (2022). Cannabidiol in Dentistry: A Scoping Review. Dentistry journal, 10(10), 193.Moraes, R. R. (2022). Cannabidiol in Dentistry: A Scoping Review. Dentistry journal, 10(10), 193.

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