COVID-19: a boca sob ataque

Os efeitos da ação do novo cononavírus sobre a cavidade oral configuram um dos maiores desafios recentes da nossa profissão – e revelam de vez a importância de especialistas em Odontologia Hospitalar nas enfermarias e nas UTIs brasileiras

Foi ainda no primeiro semestre de 2020, logo que se descobriu que a Covid-19 era uma infecção sistêmica, isto é, capaz de atingir todo o organismo, que pesquisadores na área da Odontologia passaram a desconfiar que flagrariam o coronavírus causador da doença bem ali, na cavidade oral.

Não tardou para essa suspeita se confirmar: a carga do Sars-CoV-2 na saliva é altíssima e hoje se sabe que ela vem de gotículas expiradas pelo aparelho respiratório, do fluido gengival e das próprias glândulas salivares, onde o vírus, aliás, se multiplica.

E, justamente por ele estar tão presente, a boca também foi vasculhada por diversos cientistas para ver se não achariam nela, quem sabe, alguma pista sutil da infecção ainda em sua fase assintomática – enfim, alguma manifestação prodrômica, como se diz no jargão da saúde, que ajudasse no rastreamento de novos casos. Mas, vamos esclarecer: isso nunca foi encontrado.

Tampouco os cirugiões-dentistas que trabalham em hospitais notaram alguma lesão na cavidade oral dos pacientes que fosse específica da Covid-19. Mas, atenção, isso não quer dizer que eles não tenham se deparado com nada de muito diferente. Ao contrário.

Assim como aconteceu com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e outros profissionais de saúde, os cirugiões-dentistas que foram parar na linha de frente no combate à Covid-19 tiveram uma experiência única. Para começo de conversa, por causa do período bem mais extenso – às vezes, mais de 40 ou 50 dias – que uma parcela dos infectados pelo Sars-CoV-2 permanece em centros ou unidades de terapia intensiva (UTIs), completamente dependentes de ventilação mecânica.

“Quem trabalha com cuidados intensivos observa nas pessoas em estado grave de Covid-19 as mesmas lesões orais que sempre viu em pacientes intubados”, conta Juliana Franco, coordenadora da Clínica da Assistência Odontológica em UTI do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). “Só que a quantidade e a frequência delas são absurdamente maiores”, diz.

Tratá-las, porém, é apenas parte da atuação do cirurgião-dentista no atendimento aos pacientes internados em função da Covid-19. Esse profissional é crucial em vários momentos – por exemplo, para desenhar protocolos de higiene bucal capazes de evitar pneumonias bacterianas, que, se acontecem, são capazes de piorar a situação de vez. “Sondas, tubos e outros equipamentos usados para manter o indivíduo vivo obrigam a boca a ficar aberta o tempo inteiro, e nós sabemos que, com isso, bastam cerca de 48 horas para os germes do ambiente onde aquele paciente está internado colonizá-la também”, explica a doutora Juliana Franco. “Então, a ventilação mecânica eventualmente poderá fazê-lo aspirar o conteúdo contaminado da boca, criando uma infecção oportunista nos pulmões.” Uma ameaça potencialmente fatal, diga-se.

A Odontologia nos hospitais

 

Reconhecida como área de atuação pelo Conselho Federal de Odontologia há relativamente pouco tempo, desde novembro de 2015, a Odontologia Hospitalar lança mão de equipamentos móveis que são conectados à rede de gás de enfermarias e UTIs para o atendimento à beira do leito. “Há todo um zelo com a logística para montar a mesa com os instrumentos perto do paciente, sem quebrar as normas de biossegurança”, explica Juliana Franco.

Mais do que aprender a trabalhar em uma condição diferente, sem a cadeira do dentista, o profissional dessa área está invariavelmente inserido em uma equipe multidisciplinar, com a qual avalia o prontuário de cada doente. “É interessante perceber que, na faculdade, o dentista aprende a lidar com o que seria, digamos, um organismo normal”, pondera a professora Fernanda de Paula Eduardo, coordenadora da pós-graduação em Odontologia Hospitalar do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, onde ela é também a responsável por esse serviço. “Mas, uma vez que vai atender alguém internado, ele precisa ter um conhecimento aprofundado a respeito de saúde sistêmica, saber qual é o impacto de diversas doenças na cavidade oral, como o diabetes e o câncer, e os efeitos da polifármacia, entre outras coisas.”

As lesões na boca de quem tem covid-19

 

A candidíase provocada por fungos, as feridas bolhosas do herpes simples e as úlceras causadas pelo citomegalovírus ou pelo vírus Epstein-Barr são, de longe, as lesões mais frequentes nos pacientes internados com quadros graves de Covid-19. E são todas oportunistas. Surgem por uma série de fatores. “Um deles é a leucopenia, uma diminuição importante das taxas de glóbulos de defesa no sangue, notada na fase aguda da infecção pelo Sars-CoV-2”, explica Juliana Franco. Ou seja, o coronavírus por si só já deixaria a boca vulnerável a outras infecções. “Para complicar, a imunidade também pode cair com o próprio estresse de estar em uma UTI”, acrescenta a cirurgiã-dentista.

A mucosa ressecada – e, portanto, mais fragilizada – também piora a situação. “O ressecamento tem a ver com a boca sempre aberta e, também, com o uso de uma enorme quantidade de remédios na UTI, até mesmo para manter o paciente sedado”, completa Juliana Franco.

Alguns medicamentos são famosos por causar uma queda na produção salivar, como é o caso dos corticoides. Mas, ainda que eles nem fossem usados, é sabido que a polifarmácia por si só já reduz a salivação, não importando as drogas que combine. Cabe aos
cirugiões-dentistas, no exame diário realizado nos pacientes, às vezes lançar mão de substâncias para hidratar as mucosas orais, artimanha que alivia mas nunca evita completamente as feridas.

A professora Fernanda de Paula Eduardo e seus colegas do Albert Einstein publicaram um estudo no The Journal of Dermatology no qual avaliaram 189 prontuários de pessoas com Covid-19 internadas no hospital. “Entre elas, 18 apresentavam lesões que, pela aparência, sugeriam ser causadas por vírus”, ela relembra. Pois bem: foi feito o exame de PCR a partir de amostras coletadas por meio de uma leve raspagem em 11 desses indivíduos. “Em todos os casos testados, sem exceção, o PCR acusou o vírus do herpes. No entanto, em três pessoas, o Sars-CoV-2 também estava presente nas ulcerações – que, aliás, pareciam mais profundas do que as outras que tinham apenas o vírus do herpes e com bordas mais irregulares”, resume a professora.

 

O coronavírus, por si só, já deixaria a boca vulnerável a outras infecções. Para complicar, a imunidade também pode cair com o próprio estresse de estar na UTI

Apesar desse resultado, ninguém afirmaria com convição que o Sars-CoV-2 causaria uma lesão na mucosa oral sozinho, até pelo número pequeno de pacientes estudados com esse objetivo. Mas o trabalho do Albert Einstein, como outros realizados pelo mundo, levanta a hipótese de o coronavírus ser uma espécie de empurrão capaz de ativar o vírus do herpes que estava latente naquele organismo.

Seja como for, os especialistas usam a laserterapia e a terapia fotodinâmica de baixa potência para acelerar a cicatrização dessas lesões e aplacar a dor que causam. “A melhora é bastante expressiva”, garante Juliana Franco. O problema, segundo ela, é que essas infecções oportunistas tendem a ser recorrentes durante a internação em UTI de quem está com Covid-19, pelos motivos já mencionados. “Sem contar que, em alguns hospitais, muitas vezes falta um protocolo adequado de higiene ou, em alguns momentos, ela chega a ser deixada um pouco de lado em função do estado do paciente, quando seu quadro se agrava e ele passa a ter outras demandas emergenciais”, ela lamenta informar.

Logo na internação

 

Em condições ideais, os cuidados têm início muito antes de qualquer uma das lesões provocadas indiretamente pela Covid-19 aparecer. “Na própria internação, é preciso realizar um exame cuidadoso e saber se há focos de infecção, o que infelizmente é comum na população brasileira, que costuma ter uma saúde bucal precária”, explica Juliana Franco.

Cáries, dentes trincados e doença periodontal que deixam de ser tratados com absoluta urgência não só representam um risco enorme de infecções oportunistas bem além da boca como tendem a piorar bastante durante a temporada na UTI com ventilação mecânica. “Nesse sentido, o tratamento inicial dá uma maior segurança. Mas imagine a dificuldade. Ora, se o cirurgião-dentista naturalmente já trabalha em uma cavidade que é escura e pequena, nesses pacientes costuma existir um tubo competindo pelo espaço limitado e diminuindo ainda mais o acesso para realizar qualquer procedimento”, comenta a doutora Juliana. “É preciso muito treinamento para trabalhar desse jeito.”

No exame inicial, os especialistas em Odontologia Hospitalar também sabem da importância de checar se o paciente tem algum dente com mobilidade – bambo ou mole, como dizem os leigos. “Eles são um perigo. Com a intubação, podem cair e parar no pulmão, o que é um problema e tanto. Para evitar que isso ocorra, se encontramos um dente assim, o melhor a fazer é realizar a extração imediata.” A professora Fernanda complementa: “Na verdade, os cuidados iniciais que temos com os pacientes com Covid-19 são os mesmos que devemos dedicar àquelas pessoas que vão iniciar um tratamento oncológico ou que estão prestes a fazer um transplante”, compara. “Em casos assim, a condição bucal precisa estar muito favorável para não agravar o estado sistêmico da saúde.”

Ela diz que o cirugião-dentista deve dobrar a atenção quando o indivíduo internado é portador de diabetes – condição considerada um fator de risco para quadros graves de Covid-19 e, portanto, relativamente frequente nas UTIs e enfermarias que reúnem pacientes infectados pelo Sars-CoV-2. “É um bom exemplo do trabalho em parceria com a equipe médica porque, se o controle glicêmico não está perfeito, já podemos antever um enorme agravamento de doenças periodontais”, conta. Em mais de uma ocasião, a professora viu pacientes internados apresentando febre e com os exames de sangue alterados sendo revirados pelos colegas da Medicina sem que encontrassem a causa da nova infecção. “Aí vinha o cirurgião-dentista e mostrava que a origem do problema estava na cavidade oral.”

 

A posição do paciente

 

Outra peculiaridade da Covid-19: a necessidade de manter o indivíduo intubado em pronação, isto é, de barriga para baixo durante algumas horas ao longo do dia para diminuir a pressão que o coração e a caixa torácica, com o seu peso, fazem sobre pulmões que já estão com enorme dificuldade para se encherem e se esvaziarem de ar. No entanto, se para esses órgãos a posição pode ser uma trégua ou alívio, para a boca a virada do corpo representa o risco de traumas. “Afinal, ela acaba pressionada, já que o rosto fica contra a maca e ainda há o tubo”, diz Juliana Franco. De novo, é o cirurgião-dentista quem faz a inspeção depois.

Do mesmo modo, ele zela para que o tubo não esteja machucando lábios e gengivas, às vezes ajudando o fisioterapeuta a ajeitar o equipamento. “Isso se mostrou mais fundamental ainda nos casos de Covid-19”, opina a professora Fernanda. De novo, a razão é o período extenso em que os doentes ficam na ventilação mecânica. “Há registros até de necrose labial. A possibilidade de o tubo comprimir demais os lábios tem outra dimensão na Covid-19.”

 

A Covid-19 é o grande divisor de águas da Odontologia Hospitalar. […] É preciso parar de achar que ter um cirurgião-dentista na equipe do hospital é um luxo

A ameaça de sangramentos

 

Precisamos ter em mente o seguinte: a infecção pelo Sars-CoV-2 é considerada a doença mais pró-trombótica que a humanidade já viu. Devido a uma série de mecanismos desencadeados pelo coronavírus, surgem microscópicos coágulos bloqueando a circulação sanguínea nos pequenos vasos dos pulmões e do sistema nervoso central. Isso sem contar o risco de tromboses venosas capazes de levar a amputações de membros. Isso evidentemente justifica o uso de doses consideráveis de anticoagulantes. Mas há um revés: sangramentos na boca. “Eles devem ser estancados”, afirma a professora Fernanda. “O cirurgião-dentista pode aplicar medicamentos locais ou fazer compressões com técnicas específicas.” Segundo ela, muitas vezes esses sangramentos chegam a exigir mudanças nos protocolos de higienização. “Em certos períodos, mesmo a escovação cuidadosa faz sangrar. Então, talvez eu tenha de trocar a técnica e usar uma escova aspirativa”, explica.

 

Placas de proteção

 

Outro papel importante do cirurgião-dentista na linha de frente é indicar o uso de placas de proteção. Elas quase sempre são necessárias no período de extubação, mas às vezes até antes dele. “A longa permanência com o tubo pode levar a alterações orais – nos ligamentos da boca, por exemplo –, algo que as placas ajudam a amenizar”, justifica Juliana Franco.

Mais tarde, quando o paciente melhora, a retirada paulatina das drogas sedativas frequentemente provoca reações, e uma delas é ele passar a morder o tubo. “Isso pode perfurá-lo ou dobrá-lo, diminuindo a segurança. As placas, no caso, entram em cena para evitar essas mordidas”, esclarece a especialista da USP.

 

O uso de toxina botulínica

 

É também comum, ao menos por um período curto de tempo, o paciente com Covid-19 em estado grave precisar de uma traqueostomia, para receber o ar por uma abertura feita cirurgicamente na traqueia após a retirada da ventilação mecânica. “O paciente, então, pode acumular saliva, sem conseguir degluti-la”, conta. “E, nessas horas, um caminho é diminuir a produção desse fluido por meio de injeções certeiras de toxina botulínica. O cirurgião-dentista, mais uma vez, é quem sabe os pontos exatos em que a substância deve ser aplicada com essa finalidade”, diz a doutora Juliana.

 

Na alta da UTI

 

O trabalho não diminui quando o paciente sai da ventilação mecânica ou até mesmo da terapia intensiva. Primeiro, porque muitos pacientes se queixam de dores, às vezes em função de algum problema que surgiu ou que se agravou no período mais grave da Covid-19 e que não foi completamente sanado.

Além disso, há a sarcopenia, a perda de massa muscular generalizada provocada por essa infecção. “Especialmente os idosos costumam emagrecer demais e muitos deles usam próteses, que passam a não se adaptar mais à boca. Precisamos ajustá-las para diminuir o desconforto e avaliar como está a mastigação”, relata a professora Fernanda. Sem contar que alguns doentes deixam a terapia intensiva sem força nos braços ou até mesmo sem a coordenação para a escovação dos dentes. “Por isso, o cirurgião-dentista deve continuar de olho, examinando sua boca diariamente”, orienta.

E depois da pandemia?

 

Ambas as cirurgiãs-dentistas concordam: a Covid-19 é o grande divisor de águas de sua área de atuação. “Essa doença escancarou a importância da Odontologia dentro do hospital para uma boa evolução de doentes graves e de todos os pacientes com necessidades especiais”, pensa a professora Fernanda de Paula Eduardo. Para Juliana Franco, a Covid-19 prova algo que ela sempre defendeu: “As pessoas precisam parar de achar que, para um hospital, ter um cirurgião-dentista na equipe é um luxo. Não é. É básico e fundamental”, diz. Aliás, possivelmente, olhando para a Odontologia, esse é o principal legado destes tempos tão desafiadores.

 

Fontes: Inbenta e Globalbot
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