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O que se sabe sobre bruxismo

A identificação e o tratamento do problema provocam divergências, mas há consenso em alguns pontos. Confira o que dizem as principais frentes de pesquisa

Emerson Nakao
Rodolfo Francisco Haltenhoff Melani

O Glossário de Termos de Prótese Dentária (Glossary of Prosthodontic Terms – GPT) define bruxismo como uma atividade parafuncional de ranger de dentes, um hábito oral que consiste em um movimento mastigatório de trituração não funcional rítmico ou espasmódico, ou de apertamento dentário, que pode levar a um trauma oclusal.1 Essa definição, embora publicada pela Academia Americana de Prótese Dentária, não abrange todos os aspectos envolvidos no entendimento desse problema; sendo assim, não é incomum encontrar na literatura outros autores abordando tais aspectos, no sentido de contribuir para o entendimento mais completo do bruxismo.

Um recente consenso internacional2 o define como uma atividade repetitiva dos músculos mastigatórios que se caracteriza pelo apertar ou ranger dos dentes, mas sem atribuir necessariamente ao dente a origem do distúrbio, visto que indivíduos edêntulos também podem apresentá-lo, o que contribui para a hipótese de origem central, e não periférica (fatores anatômicos como a oclusão).

Acrescentam que existem duas manifestações circadianas distintas: a que ocorre durante o sono e a durante a vigília, sugerindo que a segunda pode causar mais efeitos deletérios ao sistema estomatognático que a primeira, talvez em função do tempo de atuação, que é maior no período em que um indivíduo está acordado. Propõem também um sistema de gradação no diagnóstico, assim descrito:

  • Possível: baseado somente no relato do paciente (anamnese)
  • Provável: baseado no relato do paciente + exame clínico
  • Determinado: baseado no relato do paciente + exame clínico + polissonografia (preferencialmente com registro em áudio e vídeo)

Como o bruxismo do sono e o em vigília apresentam comportamentos distintos, esse consenso recomenda “aposentar” a definição única e adotar a seguinte:

  • Bruxismo do sono: atividade muscular mastigatória durante o sono caracterizada como rítmica (fásica) ou não rítmica (tônica); não considerá-lo exclusivamente como distúrbio de movimento ou do sono no caso de indivíduos saudáveis.
    Bruxismo em vigília: atividade dos músculos mastigatórios durante a vigília caracterizada pelo contato repetitivo ou sustentado dos dentes e/ou pelo encontro estático ou dinâmico da mandíbula com a maxila; não considerá-lo exclusivamente como distúrbio de movimento em indivíduos saudáveis.

Os autores enfatizam que, nas duas condições, deve-se concentrar a atenção na atividade dos músculos mastigatórios; e que, em um menor número de pacientes, o bruxismo pode ser um sinal de algum distúrbio, como, por exemplo, apneia obstrutiva do sono, epilepsia e alterações do sono REM. Também sugerem considerá-lo como um fator de risco para consequências negativas para a saúde bucal, e não como um distúrbio em indivíduos saudáveis, esclarecendo que fator de risco é um atributo que aumenta a probabilidade de um transtorno, mas não o garante – transtorno é uma disfunção prejudicial em si, causando danos ao indivíduo.2

Existem evidências, não conclusivas, de que o bruxismo pode ter consequências positivas em indivíduos saudáveis, como ser o episódio final de despertares respiratórios, atuando diretamente nas vias aéreas superiores durante o sono, prevenindo seu colapso e restaurando sua permeabilidade;3,4 ou, ainda, reduzindo o risco de desgaste dentário químico por aumentar a salivação em casos de refluxo gastroesofágico,5 tornando-se um fator de proteção, o que mudaria completamente a forma como o bruxismo é entendido.

Cabe salientar que os conceitos e classificações encontradas na literatura variam amplamente há décadas2 e criam uma área cinza, que causa confusão a quem acessa esses estudos. A falta de cuidado na coleta e na leitura de estudos leva o profissional a utilizar somente uma parte da informação (da que foi coletada ou da que foi entendida) para identificar o problema e tratar seus pacientes. Como as formas de tratamento podem variar de acordo com o diagnóstico, é primordial que se tenha definido aquilo com que se está lidando, da maneira mais exata possível, para identificar e tratar corretamente ou, pelo menos, dentro de uma margem de erro aceitável, da qual o paciente se beneficie terapeuticamente. Conceitos e definições são constantemente testados à medida que a ciência e o tempo avançam, e estão constantemente em evolução, o que faz com que sejam difíceis de acompanhar. E a literatura, até o presente momento, não apresenta nada definitivo, o que não deve ser interpretado como uma carta branca que justifique adotar tipos de abordagem de forma aleatória.

Como o bruxismo do sono e o em vigília apresentam comportamentos distintos, há um consenso que recomenda ‘aposentar’ a definição única

Percebem-se os impactos que essas variações conceituais causam ao se consultar a literatura a respeito de mais aspectos relativos ao bruxismo, pois fica clara a dificuldade dos estudos de estabelecer uma forma de diagnosticar, formas de abordar o problema e a sua prevalência.

As formas de diagnosticar mais vantajosas seriam as não específicas, aquelas que conseguissem abordar o problema de forma mais ampla para, depois, se aprofundar. A combinação das técnicas não instrumentais (autorrelato + anamnese + exame clínico) e instrumentais (eletromiografia ou polissonografia com registro de áudio e vídeo) é bem-vinda desde que siga os princípios de acurácia, viabilidade, acessibilidade e adequação para uso clínico diário.2

Tratar o bruxismo é outra grande questão dentro da literatura. Parte-se da premissa de que não há uma cura estabelecida para ele,6 assim, as formas de tratamento existentes hoje servem no máximo para combater sintomas e/ou evitar danos. Os estudos utilizados pelo consenso concluíram que o uso da toxina botulínica ainda não pode ser considerado com certeza de resultado, pois dados conflitantes em estudos clínicos se fizeram presentes devido à heterogeneidade de critérios.

Quanto ao uso de drogas sistêmicas como antidepressivos e controladores de atividade muscular, tais estudos também apresentaram resultados inconsistentes. Apesar de resultados positivos terem sido alcançados com o biofeedback associado à eletromiografia, os resultados também não mostraram consistência suficiente para recomendá-lo em razão da falta de evidências (baixa quantidade de estudos). A placa miorrelaxante parece ser até o momento a forma terapêutica mais conhecida, aceita e utilizada no mundo, com alguma evidência de sucesso, desde que o paciente receba a devida orientação de uso e acompanhamento.

Analisando o tema um pouco mais a fundo, percebe-se que outro aspecto não abordado na definição do GPT1 é o desgaste dentário. Nos casos severos, o atrito não funcional dos dentes com altas frequência e intensidade pode causar danos estruturais extensos na coroa dos dentes, um achado clínico comum no dia a dia de um cirurgião-dentista. E novamente surge um problema quando se considerada apenas uma parte da informação, quando muitos profissionais assumem, de forma equivocada, que o desgaste dentário é sempre uma consequência direta do bruxismo, o que ajuda a entender o motivo de esse aspecto não fazer parte da definição de bruxismo que consta no glossário.

O desgaste dentário deve ser considerado, primeiramente, como parte de um processo natural ligado ao envelhecimento,>7,8 e que resulta de três processos: abrasão (desgaste produzido pela interação entre os dentes e outros materiais), atrição (desgaste pelo contato dente-dente) e erosão (dissolução do tecido duro por substâncias ácidas). Seu impacto biológico é relativamente inócuo e o tratamento é muitas vezes um processo orientado pelo paciente. A propósito, muitos deles nem têm consciência de que seus dentes apresentam algum grau de desgaste. Os dentes são parte do sistema estomatognático, que está em constante processo de mudança, permitindo que haja tempo para adaptação.4 Assim, considera-se que somente de 2% a 10% dos casos de desgaste dentário são severos e necessitam de alguma intervenção.9

Outro aspecto a se considerar durante o diagnóstico do bruxismo é a sua relação com a maloclusão, anteriormente citado no início deste artigo, que aparece na literatura como uma das possíveis causas, definida como um distúrbio de desenvolvimento do sistema maxilofacial que pode causar perturbações funcionais e estéticas. Essa hipótese baseia-se na teoria de que a oclusão pode influenciar a atividade muscular e desencadear o hábito parafuncional.10 Por outro lado, existe uma corrente que defende a tese de que o controle do bruxismo tem origem central (por exemplo, psicológica), embora as evidências sejam moderadas,11 e não periférica (por exemplo, morfológica, oclusal).12 Atualmente a literatura fundamenta mais a teoria do controle central do que a do controle periférico, além de estabelecer interessante relação com o apinhamento dentário.13 Uma recente revisão sistemática e com meta-análise concluiu o mesmo, não encontrando associação com maloclusão.6

Para entender a grande variação dos números da prevalência do bruxismo na população encontrada na literatura, uma publicação de consenso expõe que esses estudos foram baseados no autorrelato do paciente, informação colhida na anamnese, tipicamente considerado pouco confiável dada a sua imprecisão.10 Daí o motivo da proposta, de Lobbezoo e colaboradores, de um sistema de gradação no diagnóstico.2 A dificuldade em conceituar o bruxismo também influencia na correta identificação e prevalência, tornando possível uma estimativa alta de falsos positivos, o que, por sua vez, elevaria o número de sobretratamentos.

Conclusões do Consenso sobre Bruxismo6

  • Devido a variações demográficas e da dependência de dados anamnésticos, a verdadeira prevalência do bruxismo em qualquer população específica ainda é desconhecida.
  • Há moderada evidência de que fatores psicossociais como estresse, mau humor, sofrimento, nervosismo e sentimento de tristeza estejam associados com o bruxismo que ocorre durante o sono, assim como cafeína, álcool e tabagismo.
  • Não há consenso sobre quais sintomas devem ser tratados no bruxismo do sono ou da vigília.
  • Há alguma evidência de que a placa interoclusal e o biofeedback possam ser utilizados no tratamento do bruxismo do sono.
  • Há evidências conflitantes no uso da toxina botulínica A (BTA)
  • Não há evidência convincente para o uso de terapia medicamentosa para tratar o bruxismo do sono.
  • Parece haver uma relação entre bruxismo e complicações mecânicas com implantes dentários.
  • Não há cura estabelecida para o bruxismo.
  • Recomenda-se cautela ao cirurgião-dentista ao reabilitar pacientes com desgaste oclusal severo.

Prof. Dr. Emerson Nakao 

Mestre e Especialista em Prótese Dentária e professor da FFO-Fundecto, fundação conveniada à Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (Fousp)

Prof. Dr. Rodolfo Francisco
Haltenhoff Melani

Professor associado do Departamento de Odontologia Social e responsável pela área de Odontologia Legal do Programa de Pós-Graduação em Ciências Odontológicas, ambos na Fousp

REFERÊNCIAS

1. The Glossary of Prosthodontic Terms: Ninth Edition. J Prosthet Dent. 2017 [acesso em 2022 Jan 05];117(5S):e1-e105. doi: 10.1016/j.prosdent.2016.12.001. PMID: 28418832. Disponível em: https://www.academyofprosthodontics.org/lib_ap_articles_download/GPT9.pdf.

2. Lobbezoo F, Ahlberg J, Raphael KG, Wetselaar P, Glaros AG, Kato T, Santiago V, Winocur E, De Laat A, De Leeuw R, Koyano K, Lavigne GJ, Svensson P, Manfredini D. International consensus on the assessment of bruxism: report of a work in progress. J Oral Rehabil. 2018;45(11):837-44. doi: 10.1111/joor.12663. Epub 2018 Jun 21. PMID: 29926505; PMCID: PMC6287494.

3. Lavigne GJ, Kato T, Kolta A, Sessle BJ. Neurobiological mechanisms involved
in sleep bruxism. Crit Rev Oral Biol Med. 2003;14(1):30-46. doi: 10.1177/
154411130301400104. PMID: 12764018.

4. Manfredini D, Guarda-Nardini L, Marchese-Ragona R, Lobbezoo F. Theories on possible temporal relationships between sleep bruxism and obstructive sleep apnea events. An expert opinion. Sleep Breath. 2015;19(4):1459-65. doi: 10.1007/s11325-015-1163-5. PMID: 25794544.

5. Ohmure H, Oikawa K, Kanematsu K, Saito Y, Yamamoto T, Nagahama H, Tsubouchi H, Miyawaki S. Influence of experimental esophageal acidification on sleep bruxism: a randomized trial. J Dent Res. 2011;90(5):665-71. doi: 10.1177/0022034510393516. PMID: 21248360.

6. Ribeiro-Lages MB, Martins ML, Magno MB, Masterson Ferreira D, Tavares-Silva CM, Fonseca-Gonçalves A, Serra-Negra JM, Maia LC. Is there association between dental malocclusion and bruxism? A systematic review and meta-analysis. J Oral Rehabil. 2020 [acesso em 2022 Jan 05];47(10):1304-18. doi: 10.1111/joor.12971. PMID: 32246486. Disponível em: https://doi.org/10.1111/joor.12971.

7. Shellis RP, Addy M. The interactions between attrition, abrasion and erosion in tooth wear. Monogr Oral Sci. 2014;25:32-45. doi: 10.1159/000359936. PMID: 24993256.

8. Bartlett D, O’Toole S. Tooth wear: best evidence consensus statement. J Prosthodont. 2020;30(S1):20-25. doi: 10.1111/jopr.13312. PMID: 33350551.

9. Smith BG, Knight JK. A comparison of patterns of tooth wear with aetiological factors. Br Dent J. 1984;157(1):16-9. doi: 10.1038/sj.bdj.4805401. PMID: 6588978.

10. Lavigne GJ, Khoury S, Abe S, Yamaguchi T, Raphael K. Bruxism physiology and pathology: an overview for clinicians. J Oral Rehabil. 2008 Jul;35(7):476-94. doi: 10.1111/j.1365-2842.2008.01881.x. PMID: 18557915.

11. Goldstein G, DeSantis L, Goodacre C. Bruxism: Best Evidence Consensus Statement. J Prosthodont. 2021 Apr;30(S1):91-101. doi: 10.1111/jopr.13308. PMID: 33331675.

12. Lobbezoo F, Naeije M. Bruxism is mainly regulated centrally, not peripherally. J Oral Rehabil. 2001 [acesso em 2022 Jan 05];28(12):1085-91. doi: 10.1046/j.1365-2842.2001.00839.x. PMID: 11874505. Disponível em: https://doi.org/
10.1046/j.1365-2842.2001.00839.x.

13. Vieira-Andrade RG, Drumond CL, Martins-Júnior PA, Corrêa-Faria P, Gonzaga GC, Marques LS, Ramos-Jorge ML. Prevalence of sleep bruxism and associated factors in preschool children. Pediatr Dent. 2014 Jan-Feb [acesso em 2022 Jan 05];36(1):46-50. PMID: 24717709 Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24717709/.

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