Por que e como próteses totalmente cerâmicas falham?
Autor: Paulo Francisco Cesar
Professor Associado do Departamento de Biomateriais e Biologia Oral da Faculdade de Odontologia da USP.
Conforme os clínicos foram gradualmente migrando da produção de próteses com infraestruturas metálicas para a confecção de peças totalmente cerâmicas, eles começaram a obter resultados estéticos superiores, mas a frequência e o tipo de falha dessas novas estruturas “metal-free” também mudaram. De fato, materiais cerâmicos são significativamente mais frágeis do que materiais metálicos, o que nos obriga a lidar com restaurações totalmente cerâmicas de uma forma diferente daquela com a qual lidávamos com as estruturas metálicas.
Uma infraestrutura metálica resiste de 50 a 100 vezes mais à propagação de uma trinca do que uma porcelana feldspática, usada para a produção de laminados ultra-finos. Portanto, próteses totalmente cerâmicas demandam um planejamento que garanta um desenho com espessura suficiente nas áreas mais críticas de acúmulo de tensões, além de procedimentos adesivos que ofereçam o máximo de imbricamento mecânico com os substratos presentes no preparo dentário, para alcançarmos uma longevidade clínica aceitável. Além disso, devemos levar em consideração que é preciso garantir um resultado estético final que mimetize a dentição natural. Conclui-se, portanto, que a produção de próteses dentárias de cerâmica não é um trabalho fácil, e exige dedicação e treinamento avançado, tanto do clínico como do técnico em prótese dentária.
Para produzir restaurações cerâmicas com grande longevidade clínica, é preciso compreender como e por que essas peças podem falhar e, a partir desse conhecimento, realizar uma engenharia reversa para evitar que os fatores que levaram à falha estejam presentes no trabalho finalizado. Uma prótese cerâmica pode falhar por fratura do material, por um problema de adesão (descolamento ou micro-infiltração levando a cárie secundária), ou por problemas estéticos. Aqui nesse texto, iremos focar nas falhas por fratura, que tem uma incidência relevante na clínica diária.
A fratura de restaurações cerâmicas obedece sempre a um mecanismo básico que é explicado por uma ciência chamada de “Mecânica da Fratura”. Toda restauração cerâmica fratura a partir de um defeito presente na microestrutura do material, chamado de “origem”. De forma resumida, pode-se dizer que, quando um paciente aplica cargas mastigatórias sobre uma restauração cerâmica, essas cargas colocam esses defeitos sob tensão até que, num determinado momento, esse defeito se propaga em uma fratura catastrófica. Esse termo “fratura catastrófica” indica que essa propagação do defeito ocorreu sem que houvesse algum aviso prévio que fosse perceptível pelo clínico ou pelo paciente.
O primeiro passo para compreender o motivo de uma fratura catastrófica é identificar a sua origem e classificar o tipo de defeito presente no material. Essa identificação é feita por profissionais que utilizam ferramentas de uma ciência chamada Fractografia. O processo é realizado com microscópios eletrônicos, com os quais se pode visualizar os defeitos que originaram a falha com grande aumento e elaborar hipóteses sobre o tipo de origem (Figura 1).
Em Odontologia, as origens das fraturas podem ter sido incorporadas no material durante a sua produção industrial, durante os procedimentos laboratoriais realizados pelo técnico em prótese dentária, durante os procedimentos de ajustes clínicos feitos pelo cirurgião dentista, ou durante o uso da peça pelo paciente.
Os defeitos incorporados pelos próprios fabricantes precisam ser identificados pelos pesquisadores e apresentados aos responsáveis pela produção do material, para que estes possam tomar as providências necessárias para evitar a presença desses defeitos no material. Dentre as origens mais comuns ligadas aos problemas no fluxo de produção industrial dos materiais, estão os poros presentes em blocos para processamento CAD-CAM, as impurezas que, muitas vezes, são incorporadas no momento da produção de pós-cerâmicos e as ranhuras relativamente profundas geradas pelas pontas diamantadas ou brocas multilaminadas presentes em fresadoras CAD-CAM.
O laboratório de prótese é responsável por boa parte da manipulação e produção de peças cerâmicas por meio de diversos fluxos analógicos ou digitais. Os técnicos em prótese dentária também devem estar atentos a defeitos que podem ser incorporados durante a produção dessas peças. Dentre os defeitos mais comuns estão as zonas altamente porosas presentes em camadas de porcelana feldspática aplicadas sobre refratário, ou sobre diferentes infraestruturas (metálicas ou cerâmicas). A estratificação da camada de porcelana é um procedimento delicado, realizado com pincéis especiais e, se não for realizada com extremo cuidado, pode resultar na presença de múltiplos poros aglomerados. Quando essa aglomeração de poros está localizada em zonas da peça que acumulam muita tensão, como, por exemplo, a região de margem cervical na região proximal de uma coroa, a probabilidade de fratura a partir desse ponto será mais alta.
Os clínicos também podem ser responsáveis pela geração de defeitos nas peças cerâmicas, que podem atuar posteriormente como as origens das falhas. Portanto, o treinamento contínuo desses profissionais é essencial para que utilizem protocolos corretos de manipulação de próteses totalmente cerâmicas. Por exemplo, uma das origens mais comuns geradas por clínicos são riscos profundos criados por meio de pontas e brocas de polimento e acabamento superficial. Um dos procedimentos clínicos mais difíceis em prótese é o correto polimento de peças cerâmicas, principalmente quando o processo é realizado dentro da cavidade bucal. A eliminação total de riscos profundos e lascamentos só é alcançado com a sequência de polimento apropriada para aquela cerâmica específica, com uso de magnificação (lupas ou microscópio), e boa iluminação. O clínico precisa enxergar a superfície polida com alta definição para decidir se o polimento eliminou todos os riscos profundos. Se estes forem deixados na superfície, irão certamente acumular tensões, podendo se tornar a origem de uma futura fratura.
Não podemos esquecer que, depois de finalizada, a prótese estará em função dentro da cavidade bucal de um paciente, que irá aplicar cargas mastigatórias cíclicas durante um longo período de tempo. Esse fenômeno de fadiga pode, com o passar dos anos, fazer com que defeitos pré-existentes na peça cresçam e se tornem mais deletérios. Um defeito comumente gerado pelos pacientes são microtrincas superficiais, como consequência de hábitos parafuncionais, como o bruxismo. A constante pressão e atrito do dente antagonista sobre a peça cerâmica pode danificar gradualmente a camada de glaze e gerar múltiplas trincas que vão se unindo, até que eventualmente uma delas se propague em uma fratura catastrófica. Dessa forma, a maioria dos protesistas atualmente recomenda o uso de placas de mordida pelos pacientes, principalmente após reabilitações mais extensas de modo evitar a esse fenômeno.
Em conclusão, esse artigo teve como objetivo informar o cirurgião dentista sobre como as restaurações cerâmicas falham, e quais são as possíveis origens dessas falhas, para que essa informação possa ser utilizada pelas pessoas responsáveis pela fabricação, tratamento e cuidados da prótese. Além disso, busca-se evitar a geração dos defeitos que podem causar uma fratura catastrófica e, consequentemente, aumentar a longevidade dessas restaurações.
Figura 1 – Coroa monolítica de dissilicato de lítio que fraturou após 2 meses da cimentação adesiva. A análise fractográfica em microscópio eletrônico de varredura mostrou a presença de ondulações superficiais originárias de aplicação de ponta diamantada de granulação média para ajuste intraoral. A aplicação dessas pontas deixa riscos superficiais que concentram tensão durante a mastigação e acabam propagando uma trinca, levando à fratura castastrófica da peça.