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Por que é importante restaurar um dente após o tratamento endodôntico?

A restauração final protege o remanescente coronário, ao diminuir o risco de fraturas, e garante a vedação de canais obturados

Emerson Nakao
Rodolfo Francisco Haltenhoff Melani

A literatura atual tem nos mostrado o sucesso e as significativas vantagens das mínimas intervenções em Odontologia, um conceito disruptivo. Isso se traduz na preservação do máximo de estruturas originais de tecidos bucais, ao mesmo tempo que se atua na prevenção de doenças, uma vez estabelecida a necessidade terapêutica. Ao aplicarmos esse conceito às intervenções nos dentes, a maior preservação possível do esmalte e da dentina torna-se o objetivo principal, diminuindo também a necessidade de intervenções endodônticas. Não sendo possível evitá-las, devemos ter em mente que o tratamento endodôntico só pode ser considerado concluído após a restauração final do dente. A chamada “restaurabilidade” do dente, aliás, é um dos fatores que devem ser levados em conta ao se indicar esse tipo de tratamento;1 por essa razão, faz sentido restabelecer as suas funções.

A restauração final, além de proteger o remanescente coronário por diminuir o risco de fraturas, tem um objetivo em comum com a fase de obturação dos canais. Espera-se que canais bem obturados (preenchidos) forneçam uma vedação tridimensional que evite a contaminação da região periapical.2 Todavia, cones de guta-percha condensados e cimentados não garantem essa vedação a longo prazo por si só, tornando necessário um procedimento adicional. Só isso já justifica restaurar o dente logo após a obturação de seus canais, e cabe ao cirurgião-dentista deixar isso bem claro ao seu paciente.

O paciente entende que a resolução do seu problema termina após a resolução da queixa endodôntica porque ele não tem o conhecimento das adversidades às quais está exposto um dente endodonticamente tratado não restaurado. Explicar a ele quais são essas situações adversas, portanto, pode ajudar na comunicação.

Até chegar à obturação do sistema de canais radiculares, esse dente pode ter passado por muitas situações que levaram, de forma crônica ou aguda, a um estado pulpar inflamatório irreversível, como um trauma ou uma expressiva destruição coronária causada por exposição prolongada aos ácidos produzidos pela placa bacteriana. A manutenção de um pH baixo provoca um estado de desmineralização crônica, que enfraquece progressivamente o complexo dentina/esmalte. Em outras palavras, o consequente comprometimento estrutural do dente o torna mais vulnerável à fratura, pois as cargas oclusais, antes fisiológicas, agora ficam proporcionalmente excessivas para o enfraquecido dente.

Enquanto o problema de acúmulo de placa bacteriana não for solucionado, além de se ter um ambiente excessivamente contaminado para intervenções, haverá contínua queda na resistência mecânica, aumentando gradualmente a suscetibilidade à fratura. Assim, o controle de placa é estrategicamente relevante, não só para normalizar o pH do meio e estabilizar a desmineralização dos dentes, mas também para reequilibrar o microbioma bucal. O objetivo da Odontologia é cuidar da preservação do elemento dentário em sua forma original pelo maior tempo possível, agindo em duas frentes: prevenção e intervenção. Intervir em um problema, mesmo que de forma moderna e rebuscada, não necessariamente impede a recidiva, sobretudo quando o diagnóstico não leva em consideração a origem dele. Essa seria uma “meia-solução”, pois foca na consequência, e não na causa.

Considerando que qualquer procedimento que utilize o alta rotação também contribui para tal fragilidade, incluindo a própria cirurgia de acesso à câmara pulpar, é necessário entender como ocorre esse comprometimento. Estudo ex vivo conduzido por Reeh em 19893 sugere que o local da perda dentária é tão importante quanto a quantidade de tecido perdido, principalmente quando se compromete a integridade das cristas proximais. Medicamentos e irrigantes, como o hidróxido de cálcio e o hipoclorito de sódio, também alteram as propriedades físicas (resistência flexural e módulo de elasticidade) da dentina, podendo torná-la mais suscetível à fratura.4

Essas constatações se repetem em diversos estudos, então é plausível a aplicação do conceito de Odontologia minimamente invasiva em endodontia, com pesquisas para realizar o acesso endodôntico de maneira mais conservadora, o que, em tese, contribuiria para preservar o máximo de resistência mecânica dentária possível nesses casos.5 Entretanto, ainda não há um consenso sobre essa técnica, uma vez que os resultados encontrados na literatura odontológica são divergentes. Assim sendo, por ora, essa abordagem não pode ser considerada uma recomendação.

No entanto, permanece o conceito de que, quanto mais estrutura dentária for preservada, maior resistência mecânica terá o dente, com consequente aumento das chances de sua longevidade — como sugere estudo de Rover e colaboradores (2017),5 propondo uma diminuição da extensão do acesso cirúrgico à câmara pulpar. A pesquisa ressalta que isso tem sido possível devido ao crescente uso de microscópios cirúrgicos, de instrumentos de níquel-titânio e, mais recentemente, da tomografia computadorizada de feixe cônico, recursos que viabilizaram uma significativa redução da quantidade de tecido dentário coronal e radicular removido durante o processo de abertura de um dente. O uso de compósitos também permitiu restaurações com técnicas adesivas, o que de outra forma exigiria retenções mecânicas extensas e destrutivas. Além disso, a popularização de coroas parciais ajuda a evitar a perda da estrutura dentária.

Assim, temos de considerar sempre duas situações de potencial risco ao sucesso do tratamento endodôntico: a fratura e a contaminação. Entende-se que grande parte dos dentes que necessitam de tratamento endodôntico já se encontra em estado de expressivo comprometimento da resistência mecânica, proporcional à perda tecidual, que vai se somar à adequação (preparo) do remanescente coronário, ao acesso à câmara pulpar, à utilização de irrigantes e/ou medicamentos e à instrumentação dos canais. O uso de hipoclorito de sódio durante a instrumentação dos canais4 e o contato prolongado com o produto ácido bacteriano também contribuem para a diminuição da resistência mecânica do dente. Paralelamente, mesmo que o estado inflamatório irreversível da polpa tenha evoluído de um trauma fechado, a contaminação bacteriana torna-se um obstáculo, e não por acaso é vista como uma das maiores causas do insucesso endodôntico. Daí vem a importância da restauração final, com um papel estratégico na longevidade dos dentes em questão.

Conclui-se que o êxito do tratamento endodôntico transcende a bem-sucedida descontaminação e obturação do sistema de canais radiculares: envolve também a reabilitação do dente após a endodontia e resulta na criação de condições que permitam que ele permaneça em função e livre do risco de uma contaminação pelo maior tempo possível. Longevidade é o resultado do somatório desses dois conceitos.

Mas quem nunca se deparou com algum caso que apresentava tratamento endodôntico ruim, ainda que restaurado, com estabilidade clínica havia alguns anos e sem sintomas nem evidências clínicas e radiográficas de evolução negativa da periapicopatia? Podemos considerar que é possível alcançar a saúde periapical e mantê-la mesmo com um tratamento endodôntico insatisfatório, desde que a restauração do dente esteja adequada? Para responder a essa questão, uma revisão sistemática8 com metanálise foi realizada em 2011. A resposta foi que não há como estabelecer essa relação de causa e efeito entre as duas situações devido à heterogeneidade nas amostras estudadas nas pesquisas feitas entre 1966 e 2010. Os critérios utilizados carregam um grau de subjetividade considerável e não permitem uma conclusão. Porém, sob um aspecto todos os estudos foram unânimes: alcançaram resultados de sucesso e longevidade aqueles casos em que o tratamento endodôntico e a restauração final encontravam-se em estado satisfatório. Demais variações de cenário, como a mencionada anteriormente, existem, assim como casos de insucesso que se apresentam na mesma situação, todos sem explicação. E ciência só se torna aplicável na prática do dia a dia quando comprovadas eficácia e segurança, portanto não se pode recomendar a restauração final em dentes que apresentem risco endodôntico.

REFERÊNCIAS

  1. Treatment Standards [Internet]. Chicago: American Associtation of Endodontists. 2020 [acesso em 15 out. 2022]. 26p. Disponível em https://www.aae.org/specialty/wp-content/uploads/sites/2/2018/04/TreatmentStandards_Whitepaper.pdf. 

  2. Nair PN. On the causes of persistent apical periodontitis: a review. Int Endod J. 2006;39(4):249-81. doi: 10.1111/j.1365-2591.2006.01099.x. PMID: 16584489.

  3. Reeh ES, Messer HH, Douglas WH. Reduction in tooth stiffness as a result of endodontic and restorative procedures. J Endod. 1989;15(11):512-6. doi: 10.1016/S0099-2399(89)80191-8. PMID: 2639947.

  4. Grigoratos D, Knowles J, Ng YL, Gulabivala K. Effect of exposing dentine to sodium hypochlorite and calcium hydroxide on its flexural strength and elastic modulus. Int Endod J. 2001 Mar;34(2):113-9. doi: 10.1046/j.1365-2591.2001.00356.x.

  5. Rover G, Belladonna FG, Bortoluzzi EA, De-Deus G, Silva EJNL, Teixeira CS. Influence of access cavity design on root canal detection, instrumentation efficacy, and fracture resistance assessed in maxillary molars. J Endod 2017;43(10):1657-62.

  6. Saberi EA, Pirhaji A, Zabetiyan F. Effects of endodontic access cavity design and thermocycling on fracture strength of endodontically treated teeth. Clin Cosmet Investig Dent. 2020 Apr 23;12:149-156. doi: 10.2147/CCIDE.S236815.

  7. Mannocci F, Cowie J. Restoration of endodontically treated teeth. Br Dent J. 2014 Mar;216(6):341-6. doi: 10.1038/sj.bdj.2014.198. PMID: 24651340.

  8. Gillen BM, Looney SW, Gu LS, Loushine BA, Weller RN, Loushine RJ, Pashley DH, Tay FR. Impact of the quality of coronal restoration versus the quality of root canal fillings on success of root canal treatment: a systematic review and meta-analysis. J Endod. 2011;37(7):895-902. doi: 10.1016/j.joen.2011.04.002. PMID: 21689541.

Prof. Emerson Nakao

Mestre e Especialista em Prótese Dentária e professor da FFO-Fundecto, fundação conveniada à Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP)

Prof. Dr. Rodolfo Francisco Haltenhoff Melani

Professor titular do Departamento de Odontologia Social e responsável pela área de Odontologia Legal do Programa de Pós-Graduação em Ciências Odontológicas, ambos na FOUSP

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