QUALIDADE DE VIDA E SAÚDE BUCAL:
Uma via de mão dupla

Novos estudos odontológicos reforçam que aspectos físicos, mentais e sociais, incluindo as atividades profissionais, têm grande impacto na saúde bucal da população

Apesar de muitas vezes ter sua importância subestimada pela população leiga, é sabido que a saúde bucal está associada ao surgimento de inúmeras doenças, inclusive algumas crônicas não comunicáveis, como diabetes, doenças cardiovasculares e neurodegenerativas. Além disso, as enfermidades bucais podem afetar fatores fundamentais para garantir a qualidade de vida, como a alimentação, o sono, a fala, a comunicação, a interação social e até mesmo a autoestima.

“Muitas doenças bucais causam dor, desconforto e possuem relação com estresse e ansiedade. Com a cultura da beleza e a grande importância dada à boa aparência física, as alterações dentárias têm ainda impactos emocionais, pois interferem na maneira de a pessoa se aceitar e se relacionar”, esclarece a cirurgiã-dentista Juliana Cardoso, mestre em Estomatologia e professora de Odontologia na Unime Lauro de Freitas, na Bahia, coautora de um estudo intitulado “Qualidade de vida relacionada à saúde bucal e seu impacto em adultos”.

Isso refuta a antiga ideia de que os cuidados relacionados à dentição se restringem apenas ao consultório. Hoje se sabe que tanto a avaliação da saúde bucal como o planejamento do tratamento, assim como as ações em saúde, devem ir além das condições clínicas observadas pelo cirurgião-dentista e envolver diferentes especialidades médicas. Seguindo essa linha, nos últimos anos, a ciência também tem se aprofundado no caminho inverso, ou seja, no impacto da qualidade de vida na saúde bucal. E em como isso se relaciona com questões socioeconômicas, de higiene dental, alimentação e até de prática de atividades físicas, como você vai ver a seguir.

O QUE É QUALIDADE DE VIDA, AFINAL?

De acordo com a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), qualidade de vida é a “percepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto da cultura e sistemas de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”. Mas esse conceito também se estende à qualidade de vida relacionada à saúde bucal, mais conhecida pela sigla QVRSB, que pode ser definida como “o impacto das doenças bucais sobre aspectos da vida cotidiana que são importantes para os pacientes e pessoas, (…) de magnitude suficiente, quer em termos de frequência, gravidade ou duração, para afetar a percepção do indivíduo sobre sua vida em geral”. Assim, a QVRSB engloba questões de saúde física, emocional e social. Essas definições são importantes porque reforçam o quanto a qualidade de vida e a saúde bucal são indissociáveis, uma vez que uma exerce influência sobre a outra.

Alimentação e higiene dental são os fatores mais conhecidos dessa relação entre como se vive e a saúde dos dentes. Isso porque manter uma dieta balanceada reduz a presença de bactérias nocivas na boca, e ingerir alimentos ricos em nutrientes aumenta as defesas do organismo contra doenças também nesse ambiente, o que já foi comprovado por vários estudos. Como ressalta o Conselho Regional de Odontologia de São Paulo, por exemplo, a vitamina C está associada à manutenção da saúde das gengivas, e o cálcio e a vitamina D (seu fixador no corpo) são essenciais para a formação óssea e a reposição de partículas dentárias.

Já uma pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina mostra que a alimentação influencia a condição bucal imediata e futura da criança. O estado nutricional pode afetar os dentes durante o seu período de formação e após a erupção na cavidade bucal. Além disso, o estudo demonstra que os efeitos sistêmicos provenientes da nutrição podem alterar o desenvolvimento dos dentes, a quantidade e a qualidade da saliva, da mesma forma que efeitos externos, tais como a quantidade e a frequência de açúcar ingerido, determinam uma maior prevalência de cárie dentária.

A INFLUÊNCIA SOCIOECONÔMICA

Além dos hábitos alimentares, a questão socioeconômica também faz parte dos pilares da QVRSB, com relação ao acesso do paciente a tratamentos. Isso pode ser observado na pesquisa “Avaliação da qualidade de vida relacionada à saúde bucal de crianças e suas famílias e fatores associados”, conduzida pela cirurgiã-dentista Eloisa Marcantonio, coordenadora do curso de Odontologia na disciplina de Ortodontia e professora de Odontopediatria na Universidade de Araraquara (Uniara).

Segundo o estudo, que foi feito com crianças de 5 anos de idade, há uma clara associação entre a saúde bucal precária delas e o baixo nível socioeconômico da família. Observou-se que indivíduos de baixa classe social têm acesso limitado a alguns serviços que poderiam contribuir para o tratamento de problemas dentários. “Essas crianças são filhas de pais que se ausentam o dia inteiro por causa do trabalho. E eles acabam deixando de lado muita coisa, principalmente a saúde bucal, porque ela não é levada tão a sério pela maioria das pessoas. Então não é só com os filhos, é com eles também. Faltou tempo, a saúde bucal fica por último”, observa Eloisa.

A especialista ressalta ainda que a falta de prevenção faz diferença nesse contexto. “Quando o paciente mantém a rotina de ir a consultas preventivas, é possível detectar os problemas em estágio inicial, antes mesmo que eles comecem a incomodar. Desta forma, o impacto biopsicossocial é menor ou quase nulo, visto que conseguimos, na maioria das vezes, resolvê-los antes mesmo de a doença ter gerado algum impacto na qualidade de vida”, relata.

ODONTOLOGIA DO ESPORTE

Um dos temas mais investigados atualmente é a relação da saúde bucal com a performance esportiva, o que culminou com a criação da especialidade da Odontologia do Esporte no Brasil, em 2015. Culturalmente associada à boa saúde, a atividade física, de fato, ativa o nosso sistema imunológico, responsável pelos processos de reparo do corpo. Assim, quem faz exercícios de uma forma contínua e moderada tem respostas inflamatórias melhores devido à ativação saudável do sistema imunológico. O problema são os excessos.

Uma pesquisa recente feita pela Universidade de Madrid, na Espanha, sugere que, enquanto a atividade física realizada durante o período de lazer previne a periodontite, os trabalhos braçais, como os realizados na construção civil, podem ter o efeito contrário sobre as gengivas. A gravidade da doença periodontal está diretamente relacionada à redução da força muscular em flexões, abdominais e corrida, do mesmo modo como formas mais avançadas de periodontite estão associadas à redução da aptidão cardiorrespiratória. É uma via de mão dupla, portanto.

O poder da informação

A questão socioeconômica relacionada à QVRSB também tem outra consequência importante: o acesso da população ao conhecimento. Como mostrou a pesquisa da Uniara, citada na reportagem, em populações menos favorecidas, os pais têm menor instrução sobre prevenção de desordens bucais, como informações sobre dieta, escovação, primeira visita ao dentista e uso de flúor diário. Com isso, observa-se um impacto negativo na saúde bucal de pré-escolares na família, sendo a maior prevalência de cárie apenas um dos aspectos. “Uma forma de melhorar a saúde bucal com impacto na qualidade de vida seria a elaboração de programas educativos mais sólidos, principalmente para os pais de baixa renda, para que saibam o quanto isso é importante tanto direta quanto indiretamente”, conclui a cirurgiã-dentista Eloisa Marcantonio, que conduziu a pesquisa.

Além disso, atletas de alto rendimento, quando estão se preparando para competições ou em outro período de excesso de treinamento, têm maior chance de desenvolver doenças oportunistas como herpes, por exemplo, conforme explica Eli Luis Namba, Doutor e Mestre em Odontologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), especialista em Medicina e Ciências do Esporte pela Universidade Positivo (PR), presidente da Comissão de Odontologia do Esporte do CRO-PR e vice-presidente da Academia Brasileira de Odontologia do Esporte. “Isso é bem comum com a queda imunológica. Porque ele é exigido todo dia, ao máximo, então o sistema imunológico começa a trabalhar contra”.

Segundo Namba, os pontos de atenção devem ser observados também por não atletas, principalmente porque a definição do que é um exercício moderado ou intenso depende do metabolismo de cada indivíduo, e não necessariamente da atividade física praticada. No caso de pessoas que realizam atividade física aeróbica de alta intensidade, sendo elas esportistas ou não, uma das consequências é a diminuição na liberação de saliva. “Alguns artigos demonstram que corredores, principalmente no final de uma maratona, têm uma halitose mais cetônica, muito parecida com a de um paciente diabético”, esclarece Namba.

Isso acarreta um pH mais baixo na boca e torna o ambiente bucal propício para a proliferação de bactérias, que liberam substâncias que reagem com o esmalte dentário. Assim, o indivíduo está mais suscetível a sofrer desgastes, como a desmineralização.

Além da corrida, que ganha cada vez mais adeptos no Brasil, a musculação e o crossfit são atividades bastante populares que podem afetar a saúde bucal. Ambas geram a necessidade de trabalhos de isometria, ou seja, de força. “A gente recruta cadeias musculares da face para contrair outras cadeias. Tanto por isometria, como por estresse, há uma liberação maior de cortisol e uma tendência maior a desenvolver disfunções temporomandibulares. Isso aumenta também o risco de ter refluxo esofágico, assim como na corrida”, conta o especialista. Essa contração da mandíbula amplia o risco do desenvolvimento de trauma dentário, por exemplo. Ele próprio já recebeu alguns pacientes com essa condição, principalmente do crossfit.

Namba chama atenção ainda para uma mudança metabólica quando a pessoa começa a praticar exercícios como hobby, ou uma atividade física moderada. Essa mudança provoca o envelhecimento precoce dos dentes, hipersensibilidade dentinária e lesões não cariosas, que são as novas doenças da atualidade na Odontologia. “Hoje a gente atende menos cárie e mais doenças que vêm acompanhadas dessas mudanças de estilo de vida”, expõe Namba.

“Apesar de a atividade ser de menor intensidade, quando comparada à praticada pelo atleta de alto rendimento, as consequências muitas vezes acabam sendo maiores devido à falta de acompanhamento. E, mesmo quando há um acompanhamento multidisciplinar, o atendimento não é interdisciplinar, porque o médico não conversa com o fisioterapeuta, que não conversa com o nutricionista, e isso dificulta o diagnóstico”, conclui.

OS “VILÕES” DA SAÚDE BUCAL

A questão metabólica também está relacionada a uma mudança no estilo de vida, muitas vezes acompanhada do início da prática esportiva, mas não limitada a isso. Entre os pontos dessas novas escolhas está a alimentação. Ao passo que há enorme preocupação com um famoso vilão da saúde bucal, o consumo excessivo de açúcar, pouca atenção é dada às modificações alimentares envolvidas na adoção de um estilo de vida mais saudável. “A pessoa começa uma dieta, quebra a quantidade de refeições e não tem tempo suficiente para neutralizar o pH da boca. Porque ela está comendo a cada três ou quatro horas e coloca uma atividade junto, o que torna a saliva mais ácida”, aprofunda Namba.

O mesmo acontece com quem consome com maior frequência carboidratos, como a maltodextrina, suplementos proteicos e repositores minerais com pH baixo. Isso é algo comum entre os atletas, que também fazem dietas diferentes, dependendo da modalidade, ou até jejum intermitente.

Ainda segundo o estudo da UFSC, entre os açúcares, a sacarose em especial é a maior causadora da cárie, e seu consumo, em geral, é iniciado precocemente para as crianças e permanece presente com frequência durante toda a fase de infância.

Ademais, a cirurgiã-dentista Eloisa, da Uniara, cita outros três já conhecidos vilões da saúde bucal que devem ser ressaltados aos pacientes: a falta de escovação, de contato com o flúor e da visita regular ao dentista. Por isso, é preciso cada vez mais investir em abordagens interdisciplinares, que enfatizem a compreensão dos mecanismos biopsicossociais envolvidos na qualidade de vida e na saúde bucal. Como elas são duas faces da mesma moeda, negligenciar uma afetará a outra.

COMO MEDIR A QUALIDADE DE VIDA NA PRÁTICA CLÍNICA

Acesse o QR Code e veja alguns instrumentos utilizados na Odontologia para mensurar o impacto das condições bucais na qualidade de vida de crianças e adolescentes, adultos e idosos.

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