Robôs em ação

Como a Inteligência Artificial pode revolucionar a Odontologia, agora e no futuro

Nos anos 1950, o matemático inglês Alan Turing desenvolveu uma máquina capaz de decodificar mensagens criptografadas, tecnologia que anos depois impulsionaria o que hoje conhecemos por Inteligência Artificial (IA). Por definição, a IA é um campo da ciência da computação que engloba diferentes tecnologias (redes neurais artificiais e algoritmos, entre outros) que simulam habilidades humanas relacionadas à inteligência (como o raciocínio e a tomada de decisão, por exemplo) e realizam atividades de maneira autônoma.

Com a vantagem de que as IAs também podem aprender por si mesmas (recurso conhecido como machine learning) e, assim, melhorar sua performance com o tempo. “Muitos acreditam que isso significa que seremos substituídos ou até mesmo atacados por robôs. Quando, na verdade, são apenas soluções tecnológicas criadas para facilitar o nosso dia a dia”, explica à Conexão UNNA o engenheiro Jhonata Emerick, que é CEO da Datarisk e membro da Associação Brasileira de Inteligência Artificial (Abria).  

Por todos os cantos

 

Para quem acha que a IA é coisa de ficção científica, é só dar uma olhada ao redor. Ela está presente nos algoritmos por trás das redes sociais, nos assistentes virtuais (como Siri ou Alexa), nos videogames e até mesmo nos robôs aspiradores, só para citar alguns casos. E também está revolucionando o setor de saúde, incluindo a Odontologia, é claro. A começar pelo famoso Big Data, ou seja, a análise e a interpretação de grandes volumes de dados on-line.

De acordo com uma revisão sistemática de mais de 500 estudos feita por cientistas da Robokind, organização alemã voltada à divulgação da Robótica e da Inteligência Artificial, tecnologias ligadas ao machine learning e à IA já são aplicadas em diversos países para analisar grandes volumes de dados com o intuito de complementar a tomada de decisões, o diagnóstico, o prognóstico e o planejamento do tratamento na área da Odontologia. O cirurgião-dentista Francisco Rehder, que tem cerca de dez anos de experiência no setor industrial da área da saúde, incluindo inteligência de mercado e produtos, e que atualmente é executivo da Medens Implantes, cita algumas aplicações:

“A Inteligência Artificial já pode ser usada na Odontologia para a definição automática dos pontos relacionados aos traçados cefalométricos, assim como para a leitura de radiografias panorâmicas. Por meio da comparação das imagens com um banco de laudos e diagnósticos, com a ajuda de algoritmos, propõe-se uma hipótese diagnóstica”, afirma o cirurgião-dentista.

“Vale ressaltar que, ao fundamentar sua análise em um banco de dados volumoso com grande base de conhecimento, a IA irá se deparar com situações específicas nas quais um profissional, sozinho, teria dificuldade para realizar um preciso diagnóstico, uma vez que sua capacidade de laudo está amparada em sua experiência clínica e em achados contemplados nos estudos de caso de livros e congressos”, completa Rehder.

A IA, no entanto, segundo o especialista, tem a capacidade de cruzar conhecimentos que talvez o clínico não possua e, por isso, pode não ser capaz de atuar em um caso ou reconhecer patologias que nunca viu.

Fluxo digital

 

Outra aplicação já popular da IA nos consultórios é o CAD/CAM. Também conhecido como fluxo digital, trata-se da tecnologia usada para mapear e produzir peças dentárias, como aparelhos, coroas, próteses, entre outros.


CAD (computer-aided design, que significa desenho assistido por computador, em inglês) é o nome dado aos desenhos técnicos de peças de alta precisão. Esse trabalho pode ser feito por tomografia, scanner (intra ou extraoral) ou registro fotográfico. Enquanto o CAM (computer-aided manufacturing, que significa manufatura assistida por computador, em inglês) se refere à fabricação dessas peças. Após a captação da imagem, softwares realizam o planejamento virtual e, por fim, a peça é fabricada por meio de fresagem ou impressão 3D. Um exemplo de aplicação mais recente são os aparelhos transparentes, que têm conquistado cada vez mais adeptos na Ortodontia. A tecnologia CAD/CAM é comum também na confecção de ferramentas, peças industriais e calçados.


Ideia similar foi usada recentemente em um estudo da Faculdade de Odontologia realizado em parceria com a Escola Politécnica, ambas da Universidade de São Paulo. Com a ajuda da IA, a professora Neide Pena Coto, do Departamento de Cirurgia, Prótese e Traumatologia Maxilofaciais da Fousp, otimizou a modelagem de prótese de nariz em silicone.


Nesse caso, criou-se um programa que foi alimentado com um grande volume de fotografias de pessoas, especialmente de retratos frontais e de perfil. O objetivo era que o programa aprendesse a analisar características como o tom de pele, o tipo físico e a cor do cabelo, entre outras, a fim de gerar uma prótese de nariz compatível com o paciente.

Paralelamente, a doutoranda Denise Moral Nakamura está criando um aplicativo para auxiliar na tomada de cores da prótese, montando uma paleta de cores e texturas. Ele vai permitir que a decisão seja realizada com base em uma fotografia do paciente feita pelo CD com o próprio celular. E, por fim, uma impressora 3D desenvolvida especialmente pelos cientistas para esse projeto será responsável pela confecção da prótese.

Todo esse processo ainda costuma ser feito manualmente. “A intenção final é que esse projeto não só facilite o trabalho do cirurgião-dentista como também otimize a confecção de próteses de pessoas de lugares remotos que muitas vezes não têm acesso à tecnologia de ponta”, explica a professora Neide, da Fousp. Até agora, apenas um paciente que perdeu o apêndice nasal por conta de um câncer foi reabilitado, em tempo para que participasse do casamento do filho. A professora espera que, em breve, especialistas de diferentes cidades possam utilizar a tecnologia.

Mas as aplicações da IA na Odontologia vão além da sala do cirurgião-dentista. Elas podem ser úteis também em outros setores da clínica, com serviços que auxiliam os departamentos financeiros e de marketing, além do agendamento de consultas.

“A maneira como as pessoas se comunicam se transformou. Ninguém mais quer receber uma ligação. Nesse caso, recursos como o chatbot (software que utiliza a IA para conversar com usuários) podem fazer essa interação. Com a vantagem de que, se houver algum cancelamento, ele automaticamente agenda outro paciente da lista de espera”, afirma o cirurgião-dentista Francisco Rehder. Isso representa um ganho de economia e eficiência, na opinião do especialista, uma vez que reduz o chamado no-show (termo usado a princípio na aviação e na hotelaria para o não comparecimento de clientes, adotado depois por clínicas e consultórios).

“A IA atuará em situações nas quais um profissional teria dificuldade para realizar um diagnóstico preciso”

  O futuro da educação

O ensino da Odontologia é uma das áreas promissoras para a aplicação de robôs. O objetivo é que as universidades treinem seus alunos com a ajuda de simuladores avançados e dispositivos táteis ou até mesmo pacientes-robôs. De acordo com uma revisão de artigos feita por cientistas da Robokind, estudos com esse fim já foram realizados e publicados por pesquisadores japoneses, iranianos e chineses.


Mas isso também pode se tornar realidade para os estudantes brasileiros em breve. A Ânima Educação (proprietária da Universidade São Judas, entre outras) anunciou recentemente a compra da MedRoom, startup de desenvolvimento de soluções tecnológicas (como realidade aumentada e realidade virtual) para a educação médica. A parceria deu origem a um hub de inovação que inclui a Beneficência Portuguesa de São Paulo, o Hospital Sírio-Libanês e o Grupo Kallas, entre outros.

O que vem por aí

 

Espera-se que o chamado bioprinting — uso da tecnologia da impressão 3D para construir tecidos e órgãos — seja aplicado também na Odontologia num futuro não muito distante. Ainda que esse tipo de tecnologia, por ora, só tenha sido usado em animais, em um artigo do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, cientistas preveem que a técnica esteja disponível nos próximos 20 anos.

Até mesmo problemas mais simples, como a placa bacteriana, poderão ser resolvidos um dia com a ajuda da IA. Um estudo recente da Universidade da Pensilvânia (Estados Unidos) — que contou com a participação de um pesquisador da Universidade Federal do Ceará — propôs a aplicação de nanorrobôs com habilidade catalítica para a erradicação de biofilmes no canal radicular. Os testes foram bem-sucedidos in vitro.

Tudo isso pode parecer fantasioso a princípio, mas não se considerarmos quanto a Odontologia se transformou nas últimas décadas. “Veja quanto evoluiu a prótese bucomaxilofacial. Antes, usava-se vulcanite ou plástico na confecção, hoje trabalhamos com silicone e resina acrílica. Imagine que aquela prótese de nariz que tinha de ser afixada nos óculos hoje pode ser colada ou mesmo implantada no paciente”, comenta a professora Neide, da Fousp. Como escreveu o historiador Yuval Noah Harari, em Sapiens — Uma breve história da humanidade, “o futuro é desconhecido, e seria surpreendente se todas as previsões se concretizassem. (…) Chegamos a pensar no fim do mundo depois da II Guerra Mundial ou na criação de colônias espaciais em Marte depois do Apollo 11, mas nada disso se tornou realidade. Por outro lado, ninguém previu a internet”.

Mas a IA terá de superar ainda alguns obstáculos, especialmente nos países em desenvolvimento como o Brasil. Entre eles, Emerick, da Abria, cita o alto investimento em primeiro lugar. “Muitas tecnologias são importadas e, por isso, condicionadas à cotação do dólar. O lado bom é que isso está motivando empresas nacionais a se tornar independentes nesse sentido”, diz. Paralelamente, ele destaca a escassez de mão de obra especializada, assim como o desafio de realocar os profissionais que eventualmente ficarão sem trabalho. Até 2022, só no Brasil, cerca de 7 milhões de pessoas vão precisar de requalificação profissional como consequência do impacto do uso de IA e automação no mercado de trabalho, segundo pesquisa da IBM.

Isso não significa, no entanto, que o ofício do cirurgião-dentista esteja ameaçado. De acordo com um estudo da Universidade de Oxford (Inglaterra) que avaliou o risco de extinção de algumas profissões, ainda que certos trabalhos relacionados à Odontologia possam estar com os dias contados, como auxiliares de saúde bucal, o CD possui um escore baixo de suscetibilidade. Francisco Rehder, da Medens, concorda com tal resultado e faz uma analogia com a descoberta dos raios X no fim do século 19. “Não estamos falando em descartar médicos e dentistas, e sim em nos apropriar de ferramentas que vão trazer grandes avanços (nos diagnósticos e nos tratamentos) da mesma forma que a radiografia trouxe”, conclui.

Fontes: Inbenta e Globalbot
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