Tudo pelo like? As armadilhas odontológicas das redes sociais
Trends virais fazem sucesso na internet com conteúdo sobre saúde oral. Porém, há muito conteúdo falso e até perigoso influenciando pacientes e impactando a rotina dos cirurgiões-dentistas. Quais são os limites e como lidar com essa onda?
Basta entrar no TikTok e digitar “trend dentista” para encontrar um menu quase infindável com vídeos dos mais diversos estilos, relacionados, de alguma forma, com a Odontologia. Em meio a memes sobre os desafios enfrentados pelos profissionais e a divulgações de informações sobre saúde bucal, há também muita desinformação, vídeos de influenciadores mostrando o antes e depois de procedimentos estéticos e restaurações e até receitas caseiras no mínimo duvidosas.
Em um dos vídeos, um usuário da plataforma ensina a fazer um suposto “clareamento dental caseiro”, misturando, em um recipiente, o suco de um limão com raspas de gengibre e uma colher de creme dental. Depois, o autor do conteúdo recomenda escovar os dentes com a combinação de produtos. “Realmente é uma mistura poderosa… Para descalcificar o dente e dar sensibilidade”, alerta a cirurgiã-dentista Fernanda Campos de Almeida Carrer, professora da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP).
E este é apenas um dos inúmeros exemplos de dicas espalhadas sem nenhum critério ou regulamentação pelas redes sociais. Embora elas afetem vários campos do conhecimento, no caso da Odontologia, por se tratar de uma área da saúde, essas informações falsas, difundidas para milhões de pessoas em alta velocidade, podem ter impactos sérios, não só na vida dos pacientes, mas também na conduta dos profissionais. “Hoje, dificilmente o ser humano está isento da influência das redes. Então isso tem afetado o trabalho do cirurgião-dentista”, avalia Fernanda.
UMA FERRAMENTA PODEROSA
Com todo esse alcance, as mídias, é claro, têm também muitas funções positivas. Se usadas da forma correta, elas ajudam a divulgar informações importantes e dicas de prevenção e a promover o trabalho dos profissionais, atraindo clientes para os consultórios. “Há muita gente séria disseminando ciência, traduzindo conhecimento”, aponta Fernanda, que também usa a internet para compartilhar informações e até para capacitar outros cirurgiões-dentistas. “Como eu conseguiria atingir 5 mil dentistas se não fosse pelas redes sociais?”, questiona. Ela lembra que, apesar de haver uma gama de profissionais sérios, existe o outro lado, o de perfis nos quais a irresponsabilidade e a falta de ética imperam, de indivíduos que, como ela diz, “só querem encher o consultório”.
De fato, mídias sociais como Instagram, TikTok, Facebook e YouTube tornaram-se um recurso quase obrigatório para ações de marketing em todas as áreas de serviços. E a Odontologia não poderia ficar de fora. Essa ferramenta pode ser considerada a propaganda “boca a boca” dos tempos atuais. No Brasil, isso tem um peso ainda maior, já que pesquisas demonstram que o país é o principal consumidor de redes sociais da América Latina. De acordo com o relatório Digital 2024: Brazil, produzido pela We Are Social e Meltwater, cerca de 66% dos brasileiros, ou seja, 144 milhões de pessoas, utilizam esses meios de comunicação. Não é — nem de longe — uma porcentagem passível de ser ignorada.
Por outro lado, quando mal utilizadas, as mídias sociais também podem se tornar um meio veloz de difundir informações falsas, exageradas, distorcidas.
PADRÕES NADA REAIS
Muitos influenciadores, com milhões de seguidores, realizam procedimentos estéticos ou usam ferramentas de edição de fotos promovendo padrões de beleza distantes da realidade. Com o consumo elevado desse tipo de conteúdo, as preferências estéticas das pessoas acabam distorcidas, e muitas delas, para se parecerem com os influenciadores, acabam optando por buscar intervenções odontológicas estéticas que nem sempre funcionam da mesma forma para todos os pacientes. Além disso, elas podem não ser indicadas para determinados casos ou mesmo podem comprometer a saúde dos dentes e da face em geral.
Não é à toa que a procura por tratamentos odontológicos estéticos tem crescido exponencialmente nas últimas décadas. De acordo com dados divulgados pelo Conselho Federal de Odontologia (CFO), o número de cirurgiões-dentistas especializados em harmonização orofacial no Brasil aumentou em 322% em menos de 3 anos: em janeiro de 2022 eram 866 profissionais e, em outubro de 2024, alcançou 3.659.
A busca pela beleza, pela autoestima e por um sorriso mais bonito é algo positivo, mas é importante haver cautela e bom senso tanto da parte dos pacientes quanto — e especialmente — dos cirurgiões-dentistas. “Hoje, as pessoas chegam ao consultório com ideias e opiniões de tratamentos baseadas em conteúdos que viram nas redes sociais”, relata o cirurgião-dentista Thiago Avelar, presidente da Sociedade Brasileira de Odontologia Estética (SBOE). “A começar pelos filtros em que as pessoas aparecem com os dentes extremamente brancos, opacos e grandes, com o rosto quadrado e a pele perfeita. Desta forma, os pacientes acabam adquirindo uma visão distorcida da própria imagem”, afirma. Essa busca por ideais e padrões inalcançáveis pode resultar em problemas sérios da ordem de saúde física e mental.
De acordo com Avelar, a colocação das facetas ou lentes de contato é uma das campeãs entre os pedidos ligados à Odontologia estética. Pode ser uma boa solução? Depende. “Se executada de forma imprecisa e sem planejamento, o resultado estético imediato pode até suprir a necessidade do paciente. Porém, quando se pensa em saúde, nem sempre. A médio prazo, inflamações gengivais provenientes de peças com sobrecontorno são apenas o começo de grandes problemas futuros”, aponta.
Isso sem falar em clareamentos, reabilitações e harmonização orofacial (HOF), incluindo preenchimentos e aplicações de toxina botulínica. Todos os procedimentos podem ser feitos por especialistas habilitados, sem prejudicar a saúde e tendo bons resultados, mas é fundamental que o cirurgião-dentista estabeleça uma relação e uma comunicação de confiança com o paciente, para esclarecer o que é ou não possível e recomendável em cada caso específico.
JOIO X TRIGO
Para Fernanda, um dos pontos principais ao lidar com este cenário é, justamente, a formação de cirurgiões-dentistas capazes de dialogar com os pacientes, de mostrar a parte das informações que está correta e a que não tem evidência científica que suporte os procedimentos solicitados. “O cirurgião-dentista é um profissional que deve estar sempre atualizado com as melhores evidências, já que a Odontologia evolui muito rápido”, analisa. “É ótimo que o paciente traga informações e entenda o que está sendo feito, mas não é porque ele pediu que vamos fazer”, diferencia.
“Vamos pegar como exemplo um paciente, com cerca de 80 anos, que precisa de uma prótese dentária. Essa pessoa chega ao consultório e pede um modelo com referência em dentes grandes. Isso pode ficar muito bonito em uma pessoa mais jovem. Porém, nessa idade, fica artificial”, diz a cirurgiã-dentista. “Eu preciso ser capaz de mostrar que, da mesma forma que o cabelo esbranquiçou e a pele se enrugou, a arcada dentária também passou por transformações.” Nesse caso, o ideal de prótese desejado pelo paciente pode não ter um resultado compatível com o seu contexto.
Os cirurgiões-dentistas que atuam no mercado podem, sim, estar nas redes sociais e lidar com a realidade imposta com o advento e a popularização delas. Mas, para os especialistas, é preciso promover uma educação sobre quais fontes são realmente confiáveis e seguras e quais devem ser, ao menos, questionadas. Universidades, instituições como o Conselho Federal de Odontologia e os Conselhos Regionais de Odontologia e professores podem apresentar um conteúdo sério sobre saúde bucal, tratamentos estéticos e assuntos da área. É importante ter critérios ao seguir dicas da internet, principalmente quando a saúde está em jogo. “Não se deve acompanhar um youtuber ou influenciador pelo número de seguidores e, sim, pelo seu histórico, pela sua formação”, orienta Fernanda. Ela reconhece que o conteúdo produzido por cirurgiões-dentistas pode não ser sempre tão divertido e engraçado como o de um influenciador, embora alguns profissionais reúnam também esse talento. Porém, o que conta são a veracidade e a confiabilidade das informações.
Além da importância de educar os usuários e os produtores de conteúdo, a professora também chama a atenção para a necessidade de regulamentação das plataformas de mídia social. “Qualquer meio de comunicação do país é regulado, e as mídias sociais não são. Não há como o dentista e o paciente ficarem isentos, já que são influenciados e influenciam por esse meio”, argumenta. Para ela, as redes não são vilãs. “O que precisamos é saber como usá-las”, conclui.
REFERÊNCIAS:
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