A SEGURANÇA DO PACIENTE no tratamento odontológico

Toda intervenção em saúde está sujeita a um risco, maior ou menor, de insucesso. Veja por que todos os envolvidos, do cirurgião-dentista ao paciente, podem ser responsáveis pelos eventos adversos

Emerson Nakao
Simone Maria Alves Tartaglia

Qualquer dicionário tratará a palavra paciente como um adjetivo, referindo-se ao indivíduo que tem paciência, ou como um substantivo, ou seja, referindo-se àquele que está doente ou suspeito de portar uma doença. Em outras palavras, é toda pessoa que demanda e recebe cuidados de um profissional da saúde, seja esse um médico, como um fisioterapeuta, ou um cirurgião-dentista, por exemplo, para uma avaliação ou um tratamento. A palavra origina-se do latim pati e do grego pathe, que significa sofrer ou aguentar.

Quando falamos em segurança do paciente, como o próprio termo sugere, nos referimos a uma série de medidas que têm o intuito de reduzir a um mínimo possível o risco de dano desnecessário associado ao cuidado de saúde,1 isto é, assegurar por meio de ações que nada de ruim aconteça ao paciente durante a fase de cuidados profissionais. Há desdobramentos interessantes desse conceito, e o primeiro deles é que isso implica dizer que em toda intervenção em saúde há sempre um risco maior ou menor de insucesso. Até um simples analgésico pode causar efeitos adversos, mesmo quando é indicado e prescrito corretamente, e, por esse motivo, há um aviso registrado em sua bula.

Não é uma imprecisão concluir que o risco tem uma relação direta com o tipo e número de intervenções (visto que os riscos de cada intervenção podem se somar), pois, quanto mais complexo ou maior o número de intervenções, maiores serão os riscos de ocorrer adversidades. Por isso, devem ser cuidadosamente escolhidas e realizadas, a começar pelo diagnóstico preciso, tendo-se em mente as consequências de cada decisão ou ação para prevenir possíveis adversidades e contorná-las, caso venham a acontecer.

Nesse contexto, faz sentido que medidas se tornem públicas e sejam adotadas por qualquer profissional da área da saúde para diminuir a probabilidade de que algo indesejado aconteça ao paciente. É improvável que o leitor nunca tenha ouvido a frase “Prevenir é melhor que remediar”. De fato, prevenir (do latim praevenire: antecipar, perceber previamente) é a estratégia mais adequada a se adotar, de acordo com a prática hoje conhecida como cuidado centrado no paciente. Essa percepção permite a elaboração de estratégias que, ao antecipar possíveis adversidades, diminuem o risco do seu acontecimento. Por exemplo, o uso do dique de borracha (isolamento absoluto) durante um tratamento endodôntico previne a aspiração ou a deglutição de substâncias ou materiais, como uma lima.

Medidas preventivas têm como características gerais a simplicidade, a previsibilidade e a facilidade de aplicação, pois são programadas e executadas em condições normais e estáveis, ao contrário das medidas de contenção de eventos inesperados e indesejáveis. A frase “Primum non nocere”, atribuída a Hipócrates (460 a.C.), é hoje considerada um dos princípios bioéticos, cuja tradução é “Antes de tudo, não se deve prejudicar” — nesse caso, o paciente. Como posto anteriormente, erros podem ocorrer em qualquer fase de um tratamento, e é crucial que o cirurgião-dentista tenha recebido o treinamento adequado (formação) e mantenha-se atualizado para realizar todo procedimento de forma tranquila e segura, ficando atento para identificar possíveis obstáculos que acarretem eventos adversos.

Define-se evento adverso (EA) como um incidente que resulta em danos à saúde do paciente. Um exemplo de um EA evitável é quando o paciente contrai uma infecção por falta de higiene das mãos ou não atinge os resultados esperados por prescrição errada de um medicamento, o que pode acontecer também por falha na comunicação. E, segundo a literatura aponta, é o mais incidente. A maioria dos EAs em Odontologia poderia ser evitada,2 e a causa mais frequente é o não cumprimento de protocolos de atendimento já pré-estabelecidos.3

Resgatando o conceito de segurança do paciente da Organização Mundial da Saúde,1 destacamos o segundo desdobramento que vale ser comentado, que é o do agente responsável pelo incidente. Tentemos aqui distinguir o sentido das palavras responsabilidade e culpa. Nos exemplos citados, podemos inferir que a responsabilidade sobre uma infecção contraída por um paciente em razão de uma falha na higienização adequada das mãos recai sobre o profissional; já quando o paciente faz uso equivocado de um medicamento e isso causa complicações ao tratamento, temos de considerar que: não houve orientação verbal; não houve tempo para explicá-la melhor; houve orientação verbal, mas o paciente não a compreendeu; o paciente não prestou a devida atenção nela por distração ou por apresentar alguma patologia neurodegenerativa, como no caso de ter idade avançada. Uma caligrafia ilegível na prescrição, assim como um erro de digitação, também pode ter contribuído. Percebemos, assim, que a responsabilidade pode recair sobre todos os envolvidos, ou seja, o cirurgião-dentista, a secretária, o paciente, e até mesmo sobre a situação, como no caso em que o tempo escasso limitou as explicações.

Um estudo de 2013 realizado na Inglaterra aponta que os EAs têm predominância nas especialidades de prótese, endodontia e cirurgia.4 Já o de Perea-Pérez,5 de 2014, feito na Espanha, aponta implantodontia, endodontia e cirurgia como as especialidades em que é mais comum o resultado adverso. É de esperar que haja essa variação de especialidades de acordo com o lugar, considerando-se que EAs têm maior probabilidade de acontecer em intervenções de maior complexidade e nas necessidades odontológicas específicas de cada localidade. Nota-se, no entanto, que as especialidades citadas têm em comum sua natureza: são procedimentos mais invasivos, que exigem maior conhecimento e treinamento para sua realização. Isso não significa que as demais intervenções, como uma restauração direta, sejam isentas de adversidades (uma falha na adaptação da restauração ou dor pós-operatória, são situações de EA). Porém, não têm a mesma repercussão. E para que sejam considerados precisam necessariamente ser notificados, o que parece não acontecer de fato.

Outro estudo realizado em 2016, por Maramaldi,6 listou o que seriam potenciais causas para os EAs, sendo possível classificá-las em 12 categorias, que compreendem de origem organizacional a falhas técnicas. Exemplificando algumas dessas causas, temos:

◦ Falha em garantir que o equipamento de esterilização esteja funcionando corretamente;
◦ Calibração inadequada do equipamento de raios X;
◦ Falta de treinamento adequado da equipe;
◦ Falha em fazer exames orais abrangentes devido a pressões do fluxo de trabalho;
◦ Deixar cimento no sulco;
◦ Técnica de extração inadequada, danificando o assoalho da boca;
◦ Falha na realização da restauração final devido à não adesão do paciente;
◦ Peças de mão avariadas (indisponibilidade durante a intervenção).

E alguns exemplos de EA:

◦ Reação alérgica a materiais dentários;
◦ Deglutição indesejada (materiais, coroas protéticas, limas endodônticas);
◦ Aspiração indesejada (materiais, coroas protéticas, limas endodônticas);
◦ Infecção pós-cirúrgica;
◦ Falhas de adaptação de restaurações diretas e indiretas;
◦ Tratamento endodôntico de dentes não restauráveis;
◦ Performance cirúrgica em local errado;
◦ Sensibilidade dentária após intervenção;
◦ Anestesia inadequada, resultando em dor;
◦ Ajuste impreciso da coroa, levando a dor de dente, desconforto e DTM;
◦ Fraturas radiculares no processo de colocação de pinos;
◦ Laceração de lábio;
◦ Entrega de próteses totais mal-adaptadas;
◦ Falhas estéticas.

Obviamente não estão todos listados aqui, porque a ideia foi a de apresentar alguns deles para um melhor entendimento. Huertas7 cita também o processo anamnéstico incompleto ou inexistente como uma das causas, pois exclui as condições sistêmicas do paciente como variável na estruturação de estratégias preventivas.

Existe um modo de mapear e entender essas adversidades, proposto pela Organização Mundial da Saúde, denominado Ciclo de Pesquisa em Segurança do Paciente.8 São 5 etapas (Fig. 1):

É preciso entender e considerar que todos os envolvidos podem ter sua parcela de participação como fatores que podem levar ao EA. Isso inclui o cirurgião-dentista, a equipe de auxiliares e até mesmo o próprio paciente. Sobre o cirurgião-dentista recaem as responsabilidades técnicas (diagnóstico, planejamento, execução e acompanhamento), que dependem de capacitação adequada e atualizações,9,10,11 enquanto sobre a equipe, quando ela existe, funções administrativas e de auxílio técnico. Mesmo a fadiga do operador foi apontada como um desses fatores,7 visto que ela o torna mais propenso a cometer erros de julgamento ou de execução de procedimentos. Pacientes com comportamento não colaborativo, seja por incapacidade mental e/ou motora, seja por idade extrema (crianças e idosos), também podem representar uma grande barreira a ser transposta, lembrando que o sucesso de qualquer tratamento não depende somente do operador.

O ambiente de trabalho também pode ser considerado um fator que influi negativamente no resultado, se nele houver muitas distrações, elevada rotatividade, iluminação inadequada,5 sala mal-equipada e/ou com equipamentos indisponíveis.

Pensando de maneira inversa, os envolvidos tanto podem participar como fatores que levam a um EA, como fatores que evitam seu acontecimento. Nesse ponto, a comunicação e o conhecimento são uma peça-chave nessa equação. Um treinamento adequado para capacitar o operador a realizar corretamente uma intervenção e prepará-lo para enxergar e contornar eventuais obstáculos, que fazem parte do processo, é tão importante quanto saber comunicá-los ao paciente. E isso faz toda a diferença quando o EA acontece.

Evidências apontam que profissionais envolvidos em EA tendem a sofrer emocionalmente, o que afeta seu desempenho e sua saúde, e pode levá-los a desenvolver um quadro depressivo e ao abuso de substâncias.12 Isso pode ser desencadeado por um equivocado sentimento de culpa e remorso ou por medo de consequências jurídicas e econômicas. Eles também são conhecidos como “segunda vítima” e precisam de apoio, do tipo não punitivo, para possibilitar uma reestruturação pessoal e profissional.

Agora de posse de todo esse conhecimento, o cirurgião-dentista deve estar preparado para agir preventivamente e evitar problemas. Vale destacar que a atuação solitária, que é uma realidade para muitos profissionais, também pode ser considerada uma das causas dos EAs. Soluções para contribuir para a melhoria da segurança dependem da identificação das possíveis causas de EAs, pois só com base nessa informação é que se podem criar estratégias para mitigar os riscos de um tratamento ter desfecho indesejado, seguindo o Ciclo de Pesquisa em Segurança do Paciente. Somado a isso, as universidades devem permear esse conhecimento desde os primeiros anos de ensino, a fim de formar profissionais mais preparados para o mercado de trabalho.

Assim como as leis de trânsito servem para prevenir acidentes automobilísticos, um plano de segurança do paciente tem como objetivo antecipar adversidades por meio de ações preventivas.

REFERÊNCIAS

  1. World Health Organization (WHO). (2010). Conceptual framework for the international classification for patient safety version 1.1: final technical report January 2009. World Health Organization. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/70882.
  2. Gómez WP, Bejarano AMP, Vargas CAR, Moncada JG, Cristancho ÉHG, Ciódaro AR. Análisis de los eventos adversos en el área de rehabilitación oral de la Facultad de Odontología de la Pontificia Universidad Javeriana Bogotá. Univ Odontol [Internet]. 2017;36(77). Disponível em: https://revistas.javeriana.edu.co/index.php/ revUnivOdontologica/article/view/20829.
  3. Bennett JD, Kramer KJ, Bosack RC. How safe is deep sedation or general anesthesia while providing dental care? J Am Dent Assoc. 2015;146(9):705-8.
  4. Hiivala N, Mussalo-Rauhamaa H, Murtomaa H. Patient safety incidents reported by Finnish dentists; results from an internet-based survey. Acta Odontol Scand. 2013 Nov;71(6):1370-7. doi: 10.3109/00016357.2013.764005. Epub 2013 Jan 28. PMID: 23351166.
  5. Perea-Pérez B, Labajo-González E, Santiago-Sáez A, Albarrán-Juan E, Villa-Vigil A. Analysis of 415 adverse events in dental practice in Spain from 2000 to 2010. Med Oral Patol Oral Cir Bucal. 2014;19(5):e500-5.
  6. Maramaldi P, Walji MF, White J, Etolue J, Kahn M, Vaderhobli R, Kwatra J, Delattre VF, Hebballi NB, Stewart D, Kent K, Yansane A, Ramoni RB, Kalenderian E. How dental team members describe adverse events. J Am Dent Assoc. 2016;147(10): 803-11. doi: 10.1016/j.adaj.2016.04.015. Epub 2016 Jun 3. PMID: 27269376.
  7. Huertas MF, Gonzalez J, Camacho S, Sarralde AL, Rodríguez A. Analysis of the adverse events reported to the office of the clinical director at a dental school in Bogotá, Colombia. Acta Odontol Latinoam. 2017;30(1):19-25. PMID: 28688182.
  8. World Health Organization (WHO). Princípios da investigação em segurança do paciente/doente: visão geral. World Health Organization. DIsponível em: https:// cdn.who.int/media/docs/default-source/integrated-health-services-(ihs)/psf/psr- -online-course/prt/sessao2.pdf
  9. Tan GM. A medical crisis management simulation activity for pediatric dental residents and assistants. J Dent Educ. 2011 Jun;75(6):782-90. PMID: 21642524.
  10. Raja S, Rajagopalan CF, Patel J, Van Kanegan K. Teaching dental students about patient communication following an adverse event: a pilot educational module. J Dent Educ. 2014 May;78(5):757-62. PMID: 24789835.
  11. Palmer JC, Blanchard JR, Jones J, Bailey E. Attitudes of dental undergraduate students towards patient safety in a UK dental school. Eur J Dent Educ. 2019; 23(2):127-34. doi: 10.1111/eje.12411. Epub 2019 Jan 21. PMID: 30582782
  12. Nainar SMH. Adverse events during dental care for children: implications for practitioner health and wellness. Pediatr Dent. 2018 Sep 15;40(5):323-6. PMID: 30355425.

Prof. Emerson Nakao

Mestre e Especialista em Prótese Dentária e professor da FFO-Fundecto, fundação conveniada à Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP)

Simone Maria Alves Tartaglia

Especialista em Auditoria em Serviços de Saúde e MBA em Gestão de Negócios

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