A delicada relação entre colutórios e covid-19

O odontologista Paulo Sérgio da Silva Santos pesquisa os efeitos de bochechos e gargarejos na redução da gravidade de casos da Covid-19 e explica o que se sabe até agora

Estudos recentes mostram que o uso de determinadas substâncias na higiene bucal pode ajudar no tratamento da Covid-19. Desde a publicação do primeiro trabalho sobre o assunto, ainda no início da pandemia, pesquisadores do Brasil e do mundo procuram entender essa relação. Um deles é o odontologista Paulo Sérgio da Silva Santos, professor associado do Departamento de Cirurgia, Estomatologia, Patologia e Radiologia da Faculdade de Odontologia de Bauru, da Universidade de São Paulo (FOB-USP).

O especialista participa de um estudo que reúne FOB-USP, Instituto de Ciências Biológicas da USP, Universidade Estadual de Londrina (PR) e Instituto Federal do Paraná, em parceria com o Centro de Pesquisa e Inovação da empresa DentalClean. As pesquisas estão no Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos (Rebec) e também foram registradas na Organização Mundial de Saúde (OMS).

Qual é a relação entre colutórios e Covid-19? De onde veio a ideia de estudar os efeitos desses produtos e substâncias contra o coronavírus?

Existem pesquisas no mundo inteiro, há cerca de 10 anos, que abordam o uso de bochechos e gargarejos para reduzir complicações de síndromes respiratórias desencadeadas por vírus. Ou seja, não é uma novidade para Covid-19. Já consta na literatura consagrada mundialmente que o uso de bochechos e gargarejos reduz por ação mecânica a quantidade de vírus que está colonizando superficialmente a mucosa da boca e a região da orofaringe posterior, de onde o ar passa do nariz por trás da garganta.

Então, se existe menos vírus nessa superfície das mucosas, a repercussão clínica dos efeitos que o vírus provoca no corpo também é reduzida. E isso pode acontecer pela ação do bochecho e do gargarejo. É claro que os vírus que entraram na mucosa e estão invadindo as células não serão atingidos por bochecho e gargarejo. Por isso, nenhuma dessas ações será 100% efetiva. Mas é possível reduzir a quantidade de vírus, e essa redução diminui a gravidade clínica dos indivíduos.

A partir desse conhecimento, começaram a ser realizados estudos com produtos que quimicamente têm alguma ação sobre a parede de vírus e bactérias. No caso de vírus, a ideia é usar produtos que provoquem uma resposta em substâncias oxidativas reativas, que agem na parede do vírus. Eventualmente, essas substâncias podem quebrar essa parede do vírus e fragmentá-lo, diminuindo a ação e a atividade do vírus na aderência do epitélio para dentro das células. Esse é o princípio que já existe na literatura para ação mecânica e química, e que vale para todos os vírus respiratórios.

Quando começaram os estudos com Covid-19 e o que se sabe sobre a interação dos colutórios com a doença?

Assim que surgiu a Covid-19 no Brasil, no início de março de 2020, um autor chinês publicou um artigo sobre o uso da água oxigenada em bochecho, dizendo que ela teria o efeito de dissolver a parede do vírus e diminuir a quantidade de vírus na boca e na garganta. Não era um estudo, era apenas uma proposta. Diante disso, inclusive, a Anvisa lançou um protocolo de cuidados bucais inserindo a água oxigenada.


Alguns professores começaram a questionar e isso gerou um tumulto por aqui. Em agosto do ano passado, saiu um estudo na revista Clinical Oral Investigation de um grupo da Alemanha que chegou à conclusão de que a água oxigenada não reduzia a carga viral dos pacientes e, portanto, não tinha efetividade sobre o vírus. Essa foi a primeira informação a respeito de bochechos e gargarejos para reduzir a carga viral de pacientes com Covid-19. E depois de um período se soube que não era efetivo.

Depois disso, a pesquisadora europeia Florence Carrouel fez uma revisão sistemática sobre o tema e estudou um produto chamado Citrox, sobre o qual publicou uma proposta de uso. O produto está registrado na plataforma Clinical Trials e a pesquisa, que ainda não foi concluída, está sendo feita em seres humanos. Também existem estudos com povidine à base de iodo, Listerine, Cepacol, mas todas aconteceram in vitro, não in vivo. De toda forma, todos esses trabalhos mostraram uma redução da quantidade de vírus e conseguiram inativar o vírus in vitro.

Além disso, o Hospital Albert Einstein tem uma parceria com a Colgate para um estudo também registrado no Clinical Trials com produtos da marca, mas os resultados ainda não foram publicados. Um grupo da USP de Ribeirão Preto também fez um estudo com própolis e mostrou melhora clínica em pacientes com Covid-19 que fizeram bochecho e gargarejo com essa substância. Esse estudo é uma publicação preprint, mas é o mais recente que eu conheço da literatura dentro do tema.

No caso da Covid-19, a ideia [dos estudos] é usar produtos que provoquem uma resposta em substâncias oxidativas reativas, que agem na parede do vírus”

Quais são os cuidados que precisamos ter ao avaliar essas descobertas?

Em primeiro lugar, no caso de pesquisas in vitro dá para saber como as substâncias funcionam, mas in vivo é diferente. É mais difícil entender o que acontece com o vírus quando ele está aderido à mucosa do paciente e tem interação com microrganismos presentes na boca, e até com o sistema imunológico do ser humano. O vírus que invade o epitélio nunca vai sofrer ação de nenhum bochecho, isso é muito importante entender. Houve uma confusão muito grande no Brasil de pessoas discordando da efetividade de colutórios, dizendo que se estava enganando a população.

 

A verdade é que não existe até o momento nada que cure Covid-19. Então, o uso de um colutório não deve mudar em nada os cuidados de prevenção, nem os tratamentos médicos necessários, nem a necessidade de vacina. É como o uso da máscara e a lavagem das mãos, é mais um cuidado que pode reduzir a quantidade de vírus. Se essa redução fosse de 1%, já valeria a pena, diante da pandemia. Então, se você tem um recurso a mais para reduzir a gravidade da situação, por que não utilizá-lo?

Por que a ação mecânica ou mesmo química de bochechos e gargarejos pode diminuir a gravidade de casos de Covid-19?

Existe uma relação direta entre a quantidade de vírus nas vias aéreas superiores, ou seja, no nariz e na boca, e a intensidade da manifestação clínica da doença. Essa relação é clara na literatura: quanto mais vírus presente, mais sintomas as pessoas têm. Então, se eu tenho menor quantidade de vírus na garganta e na boca, tenho menos chances de ter sintomas graves.

O princípio é a redução da possível gravidade. Detalhe: pode ser que não faça diferença, porque depende da sensibilidade do indivíduo, da condição da imunidade, são muitas variáveis. Mas os resultados da nossa pesquisa mostraram aproximadamente 50% de redução na gravidade da doença, e isso fez uma diferença importante para quem usou o produto.

“O uso de colutório não deve mudar em nada os cuidados de prevenção, nem os tratamentos médicos ou necessidade de vacina. […] É mais um cuidado que pode reduzir a quantidade de vírus”

Falando sobre o estudo com o derivado da ftalocianina, como surgiu essa iniciativa?

A substância que nós estamos pesquisando já existe em estudos desde a década de 80, foi aprovada pelo FDA (Food and Drug Administration) em 2003 e é utilizada na área médica para o tratamento de câncer de pele e de cabeça e pescoço. É um derivado da ftalocianina, um corante amplamente usado na medicina como terapia fotodinâmica, que começou a ser testado há quase 3 anos para o tratamento de doenças da gengiva, para reduzir bactérias no periodonto. A partir dessa pesquisa, foi observada uma resposta positiva na redução das bactérias na gengiva e da halitose provocada por essas bactérias.

Com a pandemia, os centros de pesquisa foram fechados e os testes clínicos, interrompidos. Foi quando a empresa responsável por essa pesquisa fez contato conosco para saber se poderíamos dar continuidade a ela com esse produto em pacientes com Covid-19.

A FOB-USP tem parceria com o Hospital Estadual de Bauru e é referência para o tratamento da Covid-19 na região. Então, nós conversamos com a diretoria do hospital e eles aceitaram a proposta. A ideia foi avaliar a resposta clínica de pacientes que internaram positivos para coronavírus e que usaram o produto com derivado da ftalocianina.

E quais foram as principais descobertas que vocês obtiveram?

Começamos a pesquisa fazendo uma série de oito casos, com pessoas recém-contaminadas pela Covid-19. Um desses pacientes, inclusive, foi o químico que trouxe o produto com essa substância para o Brasil, um senhor com mais de 60 anos com comorbidades. Ele teve 25% de acometimento pulmonar, sintomas na garganta e dificuldade de respiração. Fez o bochecho e o gargarejo com o produto e, em 48 horas, estava sem sintomas. Em uma semana o pulmão já tinha melhorado e ele não precisou de internação.

Claro que não foi apenas o bochecho. Nenhum paciente usou só o bochecho e o gargarejo, todos foram acompanhados por médicos e fizeram o tratamento indicado. Mas, nessa série de oito casos, nós observamos que a resposta clínica foi muito animadora, porque os sintomas de virose inicial reduziram em 24 a 48 horas. Essa foi a primeira série de casos, publicada em 2021, também no PudMed.

Depois disso vocês continuaram estudando o tema, certo?

Sim, nós acompanhamos três pacientes que tiveram úlceras bucais logo no início da manifestação dos sintomas da Covid-19. Eles usaram os bochechos e gargarejos e, em 48 horas, as úlceras desapareceram, o que também mostrou um efeito anti -inflamatório do produto. Isso acelerou a recuperação. Os resultados foram publicados em uma revista chilena (2020) e já estão na base de dados Scielo.

Em seguida, veio o estudo principal, que começou com a parceria da faculdade com o hospital estadual. Nós avaliamos 129 pacientes que foram internados com suspeita de Covid-19 e começamos a dar bochecho e gargarejo para eles cinco vezes ao dia. Ao final, ficamos com 41 pacientes que foram avaliados durante 96 horas. Tínhamos um grupo de 20 pacientes que usaram solução ativa com o produto derivado de ftalocianina e um grupo com 21 pacientes que foram randomizados e não sabiam o que estavam recebendo.

Os pacientes com Covid-19 que usaram a substância ativa eram mais idosos que os do outro grupo. Isso chamou a nossa atenção porque os idosos teoricamente têm maior suscetibilidade à gravidade da doença. E esses pacientes tiveram metade do tempo de internação no hospital quando comparado ao grupo que usou a substância não ativa. Esse foi nosso principal achado. Outro achado importante é que 1⁄3 do grupo que usou a solução não ativa precisou ir para a UTI por gravidade. Desses, metade foi a óbito. Já no grupo com a solução ativa, ninguém precisou de cuidados intensivos e nenhum foi a óbito.

Em paralelo, nós começamos também dois estudos em Londrina, no Instituto Federal do Paraná, com gel dental e spray nasal à base de ftalocianina. Agora estamos fazendo uma pesquisa em uma cidade de 1.200 habitantes, onde distribuímos a 950 pessoas da região urbana frascos com a substância ativa para bochecho. Estamos avaliando essas pessoas durante 60 dias, mas até agora houve redução na incidência de casos de Covid-19 na cidade. Por fim, está em andamento uma última pesquisa, em que vamos avaliar quanto tempo dura a efetividade do bochecho e do gargarejo com relação à redução de vírus.

Diante desses resultados e perspectivas, que orientação podemos dar aos profissionais de Odontologia?

A primeira informação importante é: nenhum bochecho evita integralmente a transmissão de Covid-19 e nenhum bochecho cura a doença. Em segundo lugar, nenhum outro cuidado pessoal ou profissional deve deixar de ser executado por causa de um bochecho ou gargarejo. A partir dessas informações, os produtos que estão sendo estudados e que mostraram efetividade na redução da carga viral ou inativação do vírus in vitro e, principalmente, em humanos podem ser utilizados pelos profissionais e pelos pacientes. Esse uso pode ser feito antes e depois do atendimento, para reduzir o risco de infecção cruzada no consultório.

VEJA MAIS:

Santos PS da S, Orcina B da F, Machado RRG, Vilhena FV, Alves LM da C, Zangrando MSR, et al. Beneficial effects of a mouthwash containing an antiviral phtalocyanine desative on the legth of hospital stay for COVID-19: randomised trial. Reasearch Square. 2021 Abr 13, PREPRINT (v1). Disponível em: https://doi.org/10.21203/rs.3.rs-365425/v1.

Orcina B da F, Santos PS da S. Oral manifestation COVID-19 and the rapid resolution of symptoms post-Phtalox treatment: a case series. Int J Odontostomat. 2021;15(1):67-70. doi: 10.4067/S0718-381X2021000100067.

Orcina B da F, Vilhena FV, Oliveira RC de, Alves LM da C, Araki K, Toma SH, et al. A phthalocyanine derivate mouthwash to gargling/rinsing as an option to reduce clinical symptoms of COVID-19: case series [Internet]. Clin Cosmet Investig Dent. 2021;13:47-50. doi: 10.2147/CCIDE.S295423.

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