Como você faz o diagnóstico da cárie?
Saiba mais sobre o Sistema Internacional de Detecção e Avaliação de Cárie (ICDAS II)
Emerson Nakao
Rodolfo Francisco Haltenhoff Melani
Caroline Teggi Schwartzkopf
Dentro do conceito de Saúde Baseada em Evidências e de uma Odontologia humanizada, como clínicos devemos sempre nos perguntar se estamos fazendo aquilo que é melhor para os pacientes. Não basta ter a melhor evidência disponível se não vamos atender às necessidades desse indivíduo. É nosso dever informá-lo, orientá-lo e ouvi-lo. E isso é especialmente válido quando se trata de como abordar a doença cárie.
A cárie dental é uma doença infecciosa muito comum, altamente influenciada pela dieta, mas não só por ela, e incide em mais de 90% da população global.¹,² Estima-se que atinja 2,3 bilhões de adultos (dentes permanentes) e 530 milhões de crianças (dentes decíduos).² Ter alta prevalência aumenta a importância de uma gestão eficiente, dadas todas as implicações que decorrem do seu desenvolvimento descontrolado, afetando as pessoas ao longo da vida. A cárie causa dor, desconforto, problemas de sociabilização, baixa autoestima e adaptação da dieta, além de estar associada a condições sistêmicas importantes, pois compartilha dos mesmos fatores de risco que essas doenças não transmissíveis. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a cárie está na lista das doenças bucais que são um fardo para a saúde de muitos países. Curiosamente, é também considerada uma das doenças mais evitáveis, junto com a gengivite.²
Sabe-se que o desenvolvimento da doença é multifatorial e se dá por fases, e que, para cada uma delas, existe uma abordagem clínica específica. O sucesso de uma terapia, porém, começa com um diagnóstico feito corretamente e depende de se conhecer exatamente seus objetivos e de ter à disposição as melhores técnicas e materiais. Um diagnóstico inconsistente e a simplificação de objetivos afetam a qualidade do atendimento, com a adoção de técnicas generalistas, muitas vezes invasivas, irreversíveis e de necessidade questionável, o que, por sua vez, leva a um maior número de etapas de tratamento, à exposição do paciente aos riscos inerentes a cada uma delas, chegando a impactar nos custos. Assim, faz sentido a utilização de um sistema que classifique e auxilie a identificar lesões de cárie e suas fases e a entender o seu contexto, tornando mais assertivos o diagnóstico e a forma de tratamento.
“Sabe-se que o desenvolvimento da doença cárie é multifatorial e se dá por fases, e que, para cada uma delas, existe uma abordagem clínica específica”
No início dos anos 2000, em uma reunião de formação de consenso dos National Institutes of Health (NIH), realizada nos Estados Unidos, os métodos tradicionais de detecção de lesões de cárie disponíveis até então foram considerados não confiáveis e não reproduzíveis. Essas conclusões ganharam aceitação em outro evento, o Consensus Workshop on Caries Clinical Trials, realizado pouco tempo depois, em Glasgow, na Escócia, no qual um grupo de cientistas internacionais desenvolveu um sistema baseado em evidências científicas, estabelecendo critérios e metodologia para a detecção dessas lesões. E, no final de 2002, nascia o ICDAS (International Caries Detection and Assessment System ou, em português, Sistema Internacional para Detecção e Avaliação de Cárie), que sofreu algumas adequações e se tornou o ICDAS II (2005), para a prática do ensino em Odontologia, a prática clínica e a pesquisa e o desenvolvimento de programas de saúde pública. O objetivo foi desenvolver uma padronização para o método visual de detecção de lesões de cárie, determinando sua gravidade e nível de atividade, baseando-se no que se conhece sobre o desenvolvimento da doença clinicamente e sua correlação histológica. Estudos recentes3,4,5 mostram sensibilidade de 70% a 85% e especificidade de 80% a 90% na detecção de cáries, em dentição decídua e permanente, e salientam sua dependência do grau de treinamento e calibração do examinador. Substanciais reprodutibilidade e acurácia também foram constatadas em uma revisão sistemática recente.6 Isso atesta a confiabilidade do método.
O ICDAS II completo tem sete categorias, sendo a primeira para os dentes saudáveis (código ou score 0) e a segunda para a lesão de cárie limitada ao esmalte, mancha branca/marrom (códigos ou scores 1 e 2). As duas categorias seguintes (códigos 3 e 4) são consideradas cáries que se estendem ao esmalte sem a dentina exposta. E as outras duas categorias restantes (códigos 5 e 6) consideraram cárie com dentina exposta. Acrescenta-se a esses scores o sinal + ou -, para registrar atividade ou inatividade da lesão. Na sua versão simplificada, ela agrega os códigos (scores) de dois em dois nomeando cada grupo com uma letra: score 0; score A (1 e 2), B (3 e 4) e C (5 e 6) (Figura 1 e tabela 1).
A detecção e a interpretação da fase da lesão de cárie em que se encontra um determinado dente naquele momento têm um grande impacto na decisão pelo tipo de intervenção a ser adotado, o que está diretamente ligado ao manejo dentário do paciente e aos resultados do tratamento. Enquanto buscamos tecnologias confiáveis de detecção, que possam auxiliar o processo e deixá-lo mais rápido e eficiente, existe uma percepção de que uma parte expressiva de cirurgiões-dentistas ainda utiliza conceitos antigos e a classificação proposta por Black para diagnosticar e intervir nos dentes acometidos por essa doença. Muito conhecimento se adquiriu desde então, e essa fundamentação, apesar de toda a importância histórica que teve, evoluiu. Frente ao que se sabe hoje sobre a doença cárie, não se podem mais aplicar esses conceitos.
Atualmente, o processo se dá por meio da avaliação visual e táctil das alterações de cor, translucidez e dureza e/ou rugosidade das superfícies dentárias observadas quando úmidas e secas – e, necessariamente, limpas. Esse método carrega um caráter de subjetividade, porém, embora pareça contraditório, não é necessariamente ruim, como mostram estudos sobre a importância e a validade dessa inspeção quando guiada pelo ICDAS II.4-6 O uso de radiografias pode dar uma ideia da extensão e da profundidade da lesão de cárie nos tecidos dentários, guardadas suas limitações em determinadas situações (localização da lesão, grau de desmineralização)1 que dificultam ou mesmo impedem a sua detecção. Os dados de um estudo levaram à conclusão de que o exame visual (ICDAS) apresentou melhor desempenho do que o exame radiográfico para a detecção de cárie oclusal.7 Sendo assim, o exame clínico antes da solicitação de um exame radiográfico é altamente recomendado.
Figura 1: Os códigos visuais clínicos do ICDAS, com base na evidência da extensão histológica das lesões.
Tabela 1: O princípio fundamental do sistema é que o exame seja realizado em dentes limpos e sem placa, conforme recomendação de diversos autores. Além disso, a secagem cuidadosa da superfície/lesão em questão é considerada importante na identificação de lesões muito precoces. Finalmente, uma sonda periodontal com ponta esférica (OMS) deve substituir os exploradores tradicionalmente usados e sondas afiadas, porque estas últimas podem produzir defeitos traumáticos quando usadas em lesões incipientes, e exploradores e sondas afiadas têm mostrado adicionar pouca informação a um exame visual sozinho.
Embora a inspeção visual e o exame radiográfico sejam considerados os métodos convencionais mais utilizados para a detecção de lesões de cárie,8-10 a literatura, independentemente das condições dos estudos, nos ensina que há uma variação considerável de diagnósticos entre os profissionais, o que influencia na tomada de decisão de um plano de tratamento, ou seja, se a intervenção será de caráter preventivo ou restaurador. E isso é esperado quando não se utilizam critérios padronizados para o exame. As variáveis que poderiam explicar essa discrepância de resultados seriam as deficiências de entendimento correto dos parâmetros do teste, o próprio conhecimento individual consolidado do assunto ou até mesmo as variações na experiência clínica, o que acaba determinando suas preferências profissionais.
Portanto, a lógica de se utilizar um sistema que se aplica tanto a dentes decíduos como a permanentes, baseado em evidências, reproduzível, confiável e de adoção internacional, é a de auxiliar nessa tomada de decisão, o que, sem dúvida, atende aos preceitos de uma Odontologia Baseada em Evidências e centrada no paciente. Ainda que exista uma carência de estudos que abordem seus efeitos sobre as opções de tratamento, particularmente nos dias de hoje, em que muito se discute sobre a evolução e a aplicação dos conceitos da Odontologia Minimamente Invasiva a respeito da remoção total ou seletiva (parcial) do tecido cariado, a literatura atual sugere que os critérios do ICDAS II têm o potencial de auxiliar no planejamento do tratamento.
Durante a avaliação clínica dos dentes, o CD deve ter em mente e seguir uma sequência de perguntas que o ajudarão na tomada de decisão por uma conduta operatória preventiva ou restauradora, ou seja, proporcional ao grau de acometimento – o que pode se traduzir até mesmo no acompanhamento do caso, que não deixa de ser uma forma de tratamento. Assim, após a profilaxia e a secagem do dente com jato de ar por 5 segundos, o profissional deve se perguntar: “Existe a lesão de cárie? Há cavitação? Qual é a profundidade (esmalte ou dentina)? Está ativa ou inativa?”. Recomenda-se ainda a substituição das sondas exploradoras convencionais com pontas por sondas periodontais com ponta esférica de 0,5 mm de diâmetro, tipo OMS, utilizada para o exame PSR (periodontal screening research), para evitar que, durante o exame táctil de rugosidade superficial, haja cavitação não intencional de manchas brancas (lesão de cárie inicial), o que mudaria drasticamente a conduta de tratamento, de preventivo a operatório. Detectar a presença de lesões de cárie faz parte de um conceito maior, que é o do diagnóstico da doença. Utilizar o critério de presença ou ausência dessas lesões isoladamente torna o exame incompleto, pois não leva em consideração informações essenciais para a tomada de decisão e outros fatores que contribuíram para a instalação e o desenvolvimento da doença, como a dieta, o histórico familiar, e as condições socioeconômicas e culturais, por exemplo.
O ICDAS faz parte de um sistema maior denominado ICCMS. Como alguns se familiarizaram com o uso do ICDAS em apenas um dos quatro domínios (prática clínica, educação, pesquisa e saúde pública), muitas vezes há confusão sobre a amplitude de sua aplicação na Odontologia. Outros não estão familiarizados com a extensão da evolução dos Sistemas na última década. Este artigo teve como finalidade trazer esse esclarecimento sobre a forma contemporânea de diagnóstico e detecção de lesões de cárie.
Concluindo, o ICDAS fornece métodos flexíveis e cada vez mais adotados para classificar os estágios do processo de cárie e o status de atividade das lesões, permitindo que os dentistas integrem e sintetizem as informações do dente e do paciente, incluindo o status de risco de cárie, a fim de planejar, gerenciar e revisar a cárie na prática clínica e de saúde pública.
Prof. Dr. Emerson Nakao
Mestre e Especialista em Prótese Dentária e professor da FFO-Fundecto, fundação conveniada à Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (Fousp)
Prof. Dr. Rodolfo Francisco
Haltenhoff Melani
Professor associado do Departamento de Odontologia Social e responsável pela área de Odontologia Legal do Programa de Pós-Graduação em Ciências Odontológicas, ambos na Fousp
Prof. Dra. Caroline Teggi Schwartzkopf
Especialista em Periodontia e Prótese e mestranda em Periodontia pela Universidade Paris VII
REFERÊNCIAS
1. Wenzel A. Dental caries. In White SC, Pharoah MJ, editores, Oral radiology: principles and interpretation. 5ª ed. Saint Louis: Mosby; 2004. p 297-313.
2. who.int [Internet]. Genebra: World Health Organization. Oral Health; 2020 Mar 25 [acesso em 2021 Jun 05]. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/oral-health.
3. Diniz MB, Rodrigues JA, Hug I, Cordeiro Rde C, Lussi A. Reproducibility and accuracy of the ICDAS-II for occlusal caries detection. Community Dent Oral Epidemiol. 2009;37(5):399-404. Epub 2009 Jul 22. doi: 10.1111/j.1600-0528.2009.00487.x.
4. Jablonski-Momeni A, Stachniss V, Ricketts DN, Heinzel-Gutenbrunner M, Pieper K. Reproducibility and accuracy of the ICDAS-II for detection of occlusal caries in vitro. Caries Res. 2008;42(2):79-87. doi: 10.1159/000113160.
5. Shoaib L, Deery C, Ricketts DN, Nugent ZJ. Validity and reproducibility of ICDAS II in primary teeth. Caries Res. 2009;43(6):442-8. doi: 10.1159/000258551.
6. Ekstrand KR, Gimenez T, Ferreira FR, Mendes FM, Braga MM. The International Caries Detection and Assessment System – ICDAS: A Systematic Review. Caries Res 2018;52:406-19. doi: 10.1159/000486429.
7. Diniz MB, Lima LM, Eckert G, Zandona AG, Cordeiro RC, Pinto LS. In vitro evaluation of ICDAS and radiographic examination of occlusal surfaces and their association with treatment decisions. Oper Dent. 2011;36(2):133-42. doi: 10.2341/10-006-L. PMID: 21777096.
8. Pitts NB, Ekstrand KR; ICDAS Foundation. International Caries Detection and Assessment System (ICDAS) and its International Caries Classification and Management System (ICCMS) – methods for staging of the caries process and enabling dentists to manage caries. Community Dent Oral Epidemiol. 2013;41(1):e41-52. doi: 10.1111/cdoe.12025. PMID: 24916677.
9. Wolwacz VF, Chapper A, Busato AL, Barbosa AN. Correlation between visual and radiographic examinations of non-cavitated occlusal caries lesions – an in vivo study. Braz Oral Res. 2004 Apr-Jun;18(2):145-9. doi: 10.1590/s1806-83242004000200010.
10. Wenzel A. Bitewing and digital bitewing radiography for detection of
caries lesions. J Dent Res. 2004;83 Spec No C:C72-5. PMID: 15286126. doi: 10.1177/154405910408301s14.